terça-feira, 12 de março de 2024

SERÁ POSSÍVEL A UTOPIA? VOU PENSAR QUE SIM!

Sempre me interessou a Utopia. A palavra vem do latim moderno “utopia”, por sua vez originado do grego: “ou” (não)+ “topos” (lugar). O que seria então equivalente a um “não-lugar”, ou lugar inexistente.

A palavra foi criada no século XVI, pelo filósofo Thomas More - significando “país imaginário onde num governo público a felicidade seria possível.” (1)  Um lugar ideal, pois, considerado  inatingível. 

Por que não há-de existir esse lugar?” Sei que a pergunta é ingénua, claro, porque é difícil encontrar um país onde tudo funcione bem e cujo plano de governo leve à “felicidade pública”? 

E penso: “Se existisse, o país da Utopia onde poderia estar? No meio da natureza? Qual natureza? A que estamos a destruir há décadas? Em alguma ilha escondida? Nestes mares poluídos já não deve existir país da Utopia. Nos glaciares? estão a derreter."

                                          Arturo Nathan, O gelo do mar

Voltei a ficar pessimista. O que é realmente a Utopia? Na última edição do velho dicionário de Cândido de Figueiredo encontrei:

Utopia, país imaginário em que tudo está organizado da melhor forma; plano de governo de que resultaria a felicidade pública, se ela fosse exequível; sistema ou ideia irrealizável.”

 No completíssimo Dicionário Aurélio” vem explicada a Utopia:

"País imaginário, criação de Thomas More, escritor e filósofo do século XVI, em Inglaterra. País esse onde um governo organizado da melhor maneira proporcionava óptimas condições de vida onde viveria um povo equilibrado e feliz.” 

 Pergunto: a felicidade pública poderá existir entre os homens? O que faz feliz um, fará feliz o outro? A felicidade deve ser só para uns? 

E duvido: não será possível mesmo? Se os homens quisessem, podia ser possível sim.

                            Thomas More

Pensei na Grécia clássica, na democracia, na culta civilização de Atenas, no equilíbrio do tempo de Péricles, no século de ouro. Talvez tenha sido o mundo mais perto do "ideal". 

  
Péricles (entre 495-429 A.C.)

 
Acrópole de Atenas hoje

Revejo como num sonho a imagem da bela “Vitória de Samotrácia”, a Nike, que o meu pai nos levou a ver no Louvre, tinha eu catorze anos. Ainda hoje guardo a minha "Nike" que era dos meus pais. 
A Vitória alada e o meu pai

"Já não há lugares assim..." O pessimismo, outra vez! Mas uma voz interior e antiga, grita-me cá dentro: “Não pode haver lugar para o pessimismo! Continua a pensar!” 

De repente lembrei os valores republicanos, sinceros, do meu Avô e os ideais de igualdade e de fraternidade do meu Pai. 

 

Pensei no temporal que vai pelo mundo, no despotismo e nas ideias fascizantes que correm pela Europa e na supremacia dos populismos por todos os lados do mundo. Pensei no nosso passado cinquenta anos atrás. Existira.

Recordei os que tinham morrido à espera de utopias. De decência. De respeito verdadeiro pelo outro. De simplicidade e equilíbrio das oportunidades. E os que lutaram antes de mim por uma vida de respeito, sem donos, quantas vezes “ni Dieu ni maître”, em liberdade e democracia? 

Pensei nos amigos que tanto acreditaram, que tanto esperaram.  Vou abandoná-los sem tomar uma atitude? Sem afirmar a minha opinião? Deixar os outros “decidir por mim”? 

Os amigos perdidos

Foi tão difícil chegar até aqui. Recordei os versos de uma canção que sempre me comoveu: "O que eu andei para aqui chegar..." (3)

Vamos deixar que nos tirem o que conseguimos? A liberdade de escolher o que apreciamos?  A nossa exigência do bem e da justiça? 

E voltar à concorrência selvagem e ao poder do dinheiro e da Banca? Ao capitalismo desenfreado outra vez?

 Não podia desistir agora. O mundo não pode afundar-se deste modo, neste esterco, neste egoísmo, nesta concorrência desleal, nestes valores capitalistas desiguais que negam o que na Utopia era importante e devia ser “para todos”.

"Paraíso Perdido"de John Milton
 
Há sempre um momento na vida em que podemos lutar pelo tal “país imaginário” com que sonhámos na juventude, "Paraíso Perdido”, de John Milton? (2)

 
Joseph Maillard Turner
 
Por que desistir quando o momento se apresenta tão grave e tão confuso pelo mundo inteiro? Um pouco de futuro pode estar sempre nas nossas mãos. Temos de o usar. Pensei no Futurismo e nesta imagem muito bela, "O cavalo Vermelho", Carlo Carrà.
 
"O cavalo Vermelho", de Carlo Carrà

Desistir? Quantas oportunidades terei ainda? Não "somos" novos como dantes - mas podemos acreditar num futuro. Volto a pensar na Cidade-Estado de Atenas, a mais culta, a mais justa: a democrática Atenas. Inatingível, como a utopia? Não. A democracia existe. Temos que lutar por ela. É frágil e pode perder-se.

 
"Academia de Atenas", de Rafaello

E quando nos dão a oportunidade de escolher temos de lutar por aquilo em que acreditamos. Poder “escolher” é uma das maravilhas da vida!

Não, não ia desistir agora. Seria uma traição! Assim, será como uma espécie de "missão": agora era a minha vez! A esperança tem que se guardar.

É o que vou fazer no próximo domingo, dia 10 de Março, dia de eleições. Vou escolher. E o que for soará!

* * *

NOTA: O texto foi escrito no dia 9 de Março de 2024, véspera das eleições administrativas. Publico-o hoje, depois das eleições claro. A vida é bela e andemos em frente!

(1)Também referido como “Morus”, Thomas Moore, Thomas Morus, ou Tomás Moro nasce em Londres em 1478 e morre na mesma cidade em 1535. Filósofo, homem de estado (foi Chanceler da Inglaterra) diplomata e escritor, advogado e homem de leis. Homem equilibrado e idealista, Moore foi considerado um dos primeiros homens do Renascimento inglês.

(2) “Paradise Lost”, romance do inglês John Milton, conta a história bíblica de Adão e Eva (da Humanidade, por extensão). Nascido em1608, morre em 1674. Milton foi um poeta, historiador e polemista inglês a sua filosofia política opunha-se à tirania. É considerado o Poeta mais importante da Inglaterra, depois de William Shakespeare.

( (3)A canção intitula-se “Eu vim de longe, p’ra muito longe”, de José Mário Branco.

https://youtu.be/KPRNdtJozIE?si=qnSxYLvJfmBvPW0z

 (Canção de José Mário Branco)

   https://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_More

   https://www.britannica.com/biography/John-Milton



sexta-feira, 8 de março de 2024

Morreu a Estrela Novais! A minha grande amiga...


 Morreu a Estrela Novais, a minha amiga Estrelinha! Conheci-a há muito tempo em Roma onde eu vivia há uns anos e ela fora a Itália fazer um estágio de Teatro, em Florença.
Parece-me que a conheci toda a vida! 
Roma, a eterna Roma "caput mundis", como dizem os romanos, marcou-nos para sempre. Roma era um mundo novo para as duas, para todos e a humanidade daquela terra cheia de beleza e de loucura era inigualável.

a Piazza Navona
 
O dia, o pôr do sol na Piazza Navonaa noite de Roma - quem o pode esquecer? A Estrela amava Roma! Eu amava Roma. Eu amo Roma. Eu quero voltar a Roma! Tenho pena que ela não o possa fazer mais...

Viveu no Instituto de Santo Antonio dei Portoghese, na Via dei Portoghesi, em pleno centro histórico onde estava alojada como bolseira. Ficámos amigas porque a Estrela era um amor, uma amiga verdadeira, uma pessoa invulgarmente generosa.

  Florença

Lembro-me como me falou entusiasmada da cidade de Florença, quando voltou de lá. Como tinha apreciado o trabalho de Vittorio Gassman, o grande actor que ela vira actuar durante o tal estágio em Florença. E como se sentia feliz por ter a oportunidade de estar a viver em Itália.

Quantas vezes a Estrela ia a nossa casa e ficava lá o fim de semana ou mais. Vivíamos fora de Roma, na Via Cassia entre La Giustiniana e La Storta

                            Campo De’ Fiori

Mas a embaixada não era longe do Instituto e, então, o Manuel combinava encontrar-se com ela no centro – geralmente na Piazza Navona ou no Panthéon e vinham juntos para nossa casa, na Cassia. Outras vezes ia eu ter com eles e almoçávamos num restaurante no Campo De' Fiori. O Manuel adorava o Campo De' Fiori! 

A última vez que estivemos os dois no Campo De' Fiori foi com outra grande amiga, a Anna Marra, jovem mulher de muita cultura a quem devo tantas das belas coisas que vi em Roma, as idas ao Teatro e às Exposições.

Nesses anos, quantas vezes fomos todos almoçar ao restaurante Da Mario, na “Piazza delle Copelle”, às vezes com o João de Almeida Santos, outro amigo de tempos tão saudosos.

 
o logo da Companhia Seiva Trupe

Quando a Seiva-Trupe pôs em cena a primeira peça do Manuel Poppe, Os amantes voluntários – a Estrelinha estava presente, como sempre esteve na “nossa” vida quando podia para nos dar a companhia dela.

A Seiva-Trupe era - e é- a grande Companhia de Teatro do Porto de que Estrela Novais foi uma das criadoras, com António Reis e Júlio Cardoso. 

Estrela Novais era uma profissional, uma pessoa que fez tudo sozinha, cuja vida nem sempre foi fácil mas que conseguiu atingir o seu sonho: ser actriz, trabalhar no teatro! Sei que estudou sempre para o conseguir e se dedicou completamente ao teatro.

Foi uma grande actriz - inteligente, sensível, trabalhadora e séria. Por vezes, nessas estadias em nossa casa, ela dizia-me:

 “Maria João esta noite vou ficar aqui no sofá da sala, se não te importas. Fico a ver uns filmes, a aprender o italiano.”

 

Ela queria aprender, vendo. E as televisões privadas passavam filmes durante toda a noite. Como em Itália os filmes eram dobrados (em italiano, claro) era de facto um “mergulho” na língua. Na “bella língua italiana” como ela dizia. Língua que falava perfeitamente passados uns meses.

Que dizer mais? A vida traz e a vida leva. Nunca compreenderemos a razão por que fomos postos neste mundo onde passamos “como sombras”, dizem os Salmos. 

Na vida passageiros, como folhas mortas, onde tudo ganhamos e tudo perdemos...

Não sabia que estava doente a Estrelinha. Nunca me disse, nunca se queixou, nunca falava dos problemas dela – não porque não tivesse confiança em mim mas porque não queria “incomodar” os outros. 

Não interessa dizer mais nada. É uma grande tristeza para todos. Os meus filhos consideravam-na uma amiga, quase da família. Conheceram-na tão pequenos, gostavam dela e a Estrela era muito amiga deles.

Foi, aliás, o meu filho a mandar a notícia à minha filha, também fora de Portugal, para que ela me dissesse. Tudo isto para eu não ter o choque de ver a notícia no telejornal, ou no Facebook, sem estar preparada para isso.

A Estrela e eu falámos durante a doença do marido e vi a dedicação enorme desta mulher que todos os dias atravessava o Tejo para estar com ele, nem que fosse um bocadinho. Mas nunca nos víamos, porque ela tinha muito trabalho e eu vivia longe. Tenho pena...

E falámos depois do seu marido, o seu amor, ter morrido. E ela falou-me quando soube que o Manuel tinha morrido.

A Estrela nunca esquecia uma data festiva - ou triste - sem telefonar. Queria estar presente. No dia 25 de Abril, todos os anos era ela a primeira a telefonar!  E nunca esquecia uma data dos anos, nunca um Natal sem uma palavra dela.

Vou ter saudades desse telefonema em Abril...

Os Festivais de Teatro em que estivemos, Estrelinha, com os amigos italianos comuns, tudo se mistura na tristeza de hoje - e tenho tantas saudades tuas já, minha querida, minha Estrelinha.

Ouvimo-nos quando, antes de partir neste Natal para Bratislava, me vieste  mandar um beijinho porque sabias que fazia um ano que o Manuel tinha morrido. Poucas palavras, "só um beijo", disseste. E bastava.

    

flores selvagens

 Se houver um outro mundo, espero que se encontrem os dois  e até o nosso cão Zac de quem foste amiga. Se não houver, há de certeza uma estrelinha para todos, no meio do céu de Van Gogh!

                        Van Gogh, Estrelas no céu do Ródano

flor de "mimosa", para uma actriz 

Morres no "Dia da Mulher" e mereces bem as flores de mimosa que em Itália homenageiam as mulheres resistentes. Porque a mimosa é delicada mas resistente, como a Mulher  - e tu foste uma grande Mulher e uma lutadora durante a tua vida. 

Sim, Estrelinha, deixo-te as mimosas amarelas que, na nossa Roma, era costume oferecer-se às mulheres, num raminho muito bonito. Até um dia, Estrela, nas tais estrelinhas! Custa-me deixar-te...

Acrescento apenas umas palavras: gostei da "despedida" que lhe fizeram os colegas e amigos na página da Companhia Seiva-Trupe:

A Estrela resolveu ir Voar...Voa, Voa, Voa Estrelinha!

(1) O dia 8 de Março é considerado o “dia da Mulher”, desde 1908 na América onde numa fábrica morreram 129 operárias. E se revoltaram. Em Itália, o dia da Mulher festeja-se desde 1946. É o dia. Foi decidido nesse data, numa Assembleia da União das Mulheres Italianas de Roma, que fossem celebradas as lutas pela Igualdade das Mulheres. A flor escolhida foi a acácia mimosa – flor delicada mas resistente e, por outro motivo, também: é uma flor simples e bonita e que não é cara!