segunda-feira, 20 de abril de 2009

A minha ilha













A minha Ilha



Sentada no jardim, imaginava os pássaros de todas as cores que esvoaçavam pela ilha, volteando, fazendo barulho e, de repente, se calavam, misteriosamente, quando a chuva caía.

Os pássaros amarelo-e-verdes, que eu via construir os ninhos, entrelaçando fitas de andala, como pequenos cestos que depois baloiçavam nos ramos arqueados da buganvília, ou nos braços doces da goiabeira. Que num instante desfaziam o trabalho meticuloso de tantas horas para irem buscar outro poiso, deixando o ramo de onde pendiam despido e sem vida. Os que saltitam, de arbusto em arbusto, fazendo estalar a comprida cauda negra, fina e móvel: os truqui sum deçu, os passarinhos de Deus que, segundo a lenda são-tomense, vão de manhã acordar o Senhor nos céus.
Lá longe, na floresta, está o ôssobô e o seu canto mavioso que anuncia as chuvas. Perto, na praia Gamboa, na pobreza e no cinzento de tantas vidas fechadas, a poesia das garças brancas, o leve bater de asa suspenso sobre o verde-vivo do capim. E os pássaros azuis. E os vermelho-e-negros. Os infinitos pássaros sem nome que alegram a ilha.

Ao cair do dia, no meu jardim, emocionavam-me os crepúsculos rubros, o desenho fino dos coqueiros, sombras estilizadas a escurecer até ao horizonte, onde se confundiam, em linhas sobrepostas, de contornos arredondados, com a bruma da floresta montanhosa, o misterioso ôbô.
O jardim molhado cheira a terra, a ervas, a flores.
Punha-me a imaginar baía, a balaustrada branca que acompanha o Água Grande e segue, depois, à beira do mar azul-turquesa, pela estrada Marginal, onde as raízes curvas e grossas dos caroceiros rebentam as pedras dos passeios. Os caroceiros têm folhas verdes, de cetim brilhante, na estação das chuvas, e douradas e vermelhas, estriadas de roxo, no fim da Gravana.

Ao pé dos barcos ferrugentos, encalhados há muito, erguem-se as acácias vermelhas com seus ramos horizontais, abertos. E, sempre, a baía na beleza calma, eterna, parada, qual branco vidro coalhado onde pairam barcos.

E pensava que nunca esqueceria a minha ilha.
Via-me a acordar, na noite de qualquer cidade longínqua, a fixar o horizonte, de olhar perdido, à procura dos céus enevoados da minha África. Os céus de fogo, com as árvores da papaia esboçadas a tinta negra. Os coqueiros a inclinarem-se suavemente, as altivas palmeiras imperiais, agitando os ramos, loucas despenteadas.

Com a saudade, viriam as imagens o cheiro da terra molhada, cheiro a queimado e a especiarias, acre e doce, indistinto mas inconfundível, que me envolveu no primeiro dia, a meio do calor sufocante da noite, da confusão de malas, de gritos e empurrões, de risos e de cores.

Voltariam as gentes da minha casa, os gritos da Milly, as gargalhadas roucas da Dáy, o murmúrio arrastado da voz da Nina, os amuos do Sr. Semedo, as malandrices do Wildger e do Maiquel...

E surgiria, como da primeira vez, a imagem da Baía Ana de Chaves na noite, com as águas escuras, impenetráveis, cheias de reflexos coloridos dos barcos e das luzes amarelas dos velhos edifícios da Alfândega.
Ao fundo, a linha do horizonte que era um risco negro no azul-escuro do mar.






Ilhas na Bruma: o Sr. Semedo




Mais histórias de S. Tomé que me vêm à memória, sempre, num redemoinhar de pessoas, de cheiros e de cores. A minha casa com os coqueiros, a goiabeira, as mangueiras, as rosas de porcelana rosadas e brilhantes como cera, e os bicos de papagaio bem vermelhos, os papiros.
Os passeios pela ilha, para sul, até à Praia Melão (que se pronunciava Milão), com os barcos de ocá cobertos pelas redes de pesca, ir pelo Pantufo, até Santana, Praia Pomba. As idas a São João dos Angolares ver os amigos: o Sr. Fernadinho, o calulu que se fazia, o Nézò que era ainda nessa altura um miúdo e já era um bom pintor.
Ou, ainda mais longe, até à Praia das Sete Ondas com o seu coqueiral lindo, a curva doce da baía e as correntes que levavam tudo para longe.

E as pessoas do meu quintal, que eram também a minha família: a Dáy, o Wildger -que em casa se chamava Nini-, a Milly, a Nina, a Tina.
E, claro, o inesquecível Sr. Semedo, com o seu cigarrinho, a tratar do jardim, a lavar o meu jeep Umm e a mastigar um fósforo, a conversar comigo, ao fim da tarde, de tudo: do dia que findava, do mar, das ondas, das "encantadas", das marés, do jardim, das crianças que tudo pisavam...
Sim, tenho tantas saudades do Sr. Semedo que contava, contava...
Era uma vez...




O Sr. Semedo...


"Encostava-se ao ancinho de metal e começava a contar. Eu deixava-me ficar deitada na rede e balançava-me devagar, com um livro aberto no colo, que não lia.
Sorria, porque sabia o que eram as histórias sem fim do Sr. Semedo.
Depressa o crepúsculo chegaria e sobre os edifícios das oficinas velhas ia-se já esboçando o vermelho-vivo do sol poente. Os altos troncos afilados dos coqueiros imperiais desenhavam a sombra no negro da noite africana. Como todos os dias a esta hora, os mosquitos desciam do alto das mangueiras.
Fechei o livro para ouvir com mais atenção.
- A dôtôra sabe? Eu vim da Ilha do Príncipe com a minha mãe quando era pequenininho. Assim mesmo...
E com a mão mostrava a altura, quatro, cinco palmos. E continuava a falar, agarrando com força o cabo da ferramenta.
- Ainda não contei, pois não?
- Não, Sr. Semedo...
-Pois foi, vim de lá...
Mudou o ancinho para a outra mão.
- E a vida era dura sempre. Lá e cá... A minha mãe veio trabalhar numa roça na cidade capital e eu comecei a ajudar no que havia...
Interrompi-o:
- A sua infância como foi, Sr. Semedo?...
- A minha infância, dôtôra...
Hesitou e depois disse:
- Sabe, a infância, dôtôra, é quando a gente olha para trás na vida e acha que tudo foi bom... Não é assim, dôtôra?
- É, Sr. Semedo...
Mudou de assunto:
- Pois é, dôtôra, trabalhei no campo, fiz tudo, mas a minha vida principal foi de pescador! Sei tudo do mar...
E, como se achasse que isso era pouco:
-...E da terra! A dôtôra já viu a lua como está agora? Quando tem o bico a apontar para o mar é para a pesca. A lua é que traz o peixe... E quando aponta para aqui, para o lado da terra, é para semear. Eu disso sei...
Sorriu, tímido, e com a mão apoiada no peito magro, encolheu os ombros e continuou:
- Já contei à dôtôra a história do meu naufrágio? Não contei, acho que não...
Olhava com medo que eu dissesse que já conhecia a história. Tinha contado, tinha, mas eu sabia o prazer com que o faria de novo.
- Não, Sr. Semedo, não contou...
- Ah! Bem me parecia! Pois foi assim...
Olhou para o fundo do jardim, como a inspirar-se.
- Estávamos lá para os lados das costas do Gabão. Dias e dias perdidos no mar... Secos, na força do sol, e na noite fria, molhados, cheios de medo... Água quase não havia, nem arroz e a farinha era pouca...
Abanava a cabeça, tirava o cigarro da orelha e voltava a pô-lo no mesmo sítio.
- E o tabaco?! Ah! O tabaco era tão pouco que a gente dividia até um bocadinho dele. Para o fim, cada um dava uma fumada, passava aos outros e descansava até chegar outra vez o cigarrinho..
Abismava-se nos pensamentos, como se voltasse a ver a noite, o mar, o medo, e continuava:
- De repente, dôtôra, no meio daquela noite escura, apareceu a luz dum barco! Um barco muito alto, enorme, era americano acho, devia ser... Era, era!
Com a cabeça acenava, a confirmar a sua certeza.
- Nós todos a gritar e a agitar as mãos... Que tempos!
Calou-se, de olhos assustados.
- E depois, Sr. Semedo?, não resistia eu a perguntar, apesar de conhecer o fim.
- Depois? Tem razão, dôtôra, depois?...Sabe o que eles fizeram?
E sem esperar resposta:
- Gritávamos todos. Nós e eles! Era uma confusão. Então...
Eu olhava-o, ansiosa:
- Então?...
- Então, foi assim... Deitaram uma rede, que parecia assim como as nossas de apanhar peixes, cheia de comida de lata. Com tudo! E a gente agarrou-a logo!
Voltou a parar, a “ver”, com temor. Respirou fundo e continuou:
- A primeira coisa que chegou, sabe o que foi?...
-Não...
- Os cigarrinhos!
Agora ria-se, com vontade, vencera o medo.
- E as encantadas, dotôra? Não sabe o que são, pois não?
- As encantadas, Sr. Semedo? O que são as encantadas?, perguntei.
- Nunca viu..., disse, quase com pena de mim.
Não respondi, não era preciso.
- Pois é, mas eu sou pescador, eu vi!
- São as sereias?...
- É isso, parece que lhes chamam esse nome. São mulheres, são como as outras. Só que andam no mar, por isso também são peixe...
- Têm cauda de peixe?...
- Pois é, é mulher e é peixe... E chamam a gente. Querem é que um homem vá ter com elas.

- Como é que chamam, Sr. Semedo?

Olhou-me de lado a ver se eu estava interessada.

- Chamam por nós, a cantar...Uii!Uii!Uii!...
E apertava os lábios deixando sair um assobio longo, quase um uivo fino.
- Assim mesmo!..., afirmava com um ar teimoso, olhando-me de lado.
O Sr. Semedo era muito teimoso.
- Um dia um meu compadre caíu ao mar e nunca mais voltou. O mar devolve sempre o corpo à terra... Só se peixe o comeu é que não volta...
- Foram as encantadas, Sr. Semedo?
- Eu não digo que foi...Pode ser. Pode ser...
Olhava desconfiado, sem saber se eu o levava a sério.
- Pode ser... Se calhar, ouviu-as... Estão sempre a chamar por nós...
E abanava a cabeça.
- Volto já dôtôra. Criança brinca com tudo...
Ia dar uma volta pelo jardim, varrer as folhas secas, ralhar aos filhos da cozinheira que iam comer a fruta que ele tinha toda “contada” para mim. E fumar o seu cigarrinho. A noite caíra de repente, sem dar por isso. Não valia a pena abrir o livro. Esperei por ele. Voltou, passado um momento, entalando outro cigarro na orelha. Vinha a queixar-se, resmungando baixo:
- Criança não tem respeito!
Mas continuou, logo, noutro tom, a olhar para mim:
- Já tinha contado, dôtôra?
O Sr. Semedo e as suas histórias inesquecíveis, infindáveis, sempre interrompidas e retomadas no ponto exacto em que as deixara. Tinha dias bons e dias maus, estes directamente ligados à quantidade de cacharamba que bebia. Tinham-me contado que era bebida forte, perigosa, feita de cana de açúcar, cuja fermentação era muitas vezes “acelerada” com ajuda de pilhas. Ele próprio me dizia:
- Talvez sejam pilhas...Queima. Mas aquece a gente, dôtôra...
Lembro uma dessas tarde que, como tantas, corriam lentas, na luz indecisa entre o azul e o branco anunciando o crepúsculo que não vinha longe. E, de chofre, sem transição, surgiria a penumbra e a noite. Viera mais cedo para casa. Na cozinha, a rádio transmitia uma “música da terra”, arrastada, dolente, interminável, que falava de uma mulata:
-“Oh! Essa mulata vai-me matar...”
E eu cantarolava-a, quando a Adelina entrou, assustada:
- Dôtôra, venha depressa ao quintal! O “sinhor” não está bom!
- O senhor?, estranhei.
- Sinhor Semedo. Está confuso da cabeça...
Nesse dia ele chegara mais cedo e fora fechar-se na sua toca, espécie de arrecadação que fora um velho galinheiro, abandonado há muito. Pintada, arranjada, era uma minúscula divisão onde tinha a sua cadeira de braços que ele cobria com jornais por causa da humidade da noite.
- É o meu reumatismo, dôtôra!, costumava dizer.
Tinha chegado com um ar perdido. À entrada do portão dissera, aliviado, “já cá estou!” e seguira, cambaleando, até ao seu cantinho, e, quase envergonhado, adormecera.
Agora, acordado, confundira a luz do fim da tarde com o amanhecer, hora a que largava o trabalho e ia para casa.
- A gente estava-se a arranjar para ir e o senhor Semedo acordou. Acho que ele julga que é de manhãzinha, quer ir embora... Pensa que eu e a Tina chegámos agora...
A Adelina ia explicando, baixinho, a arrumar os sacos de plástico, ajudada pela irmã, na varanda da cozinha. Fui ter com ele:
- Sr. Semedo, já viu a luz esquisita que está?
- É mesmo, dôtôra...”
Ele olhava desconfiado, sem perceber por que é que eu estava ali e por que olhávamos para ele.
- Nem se sabe se é dia, se é noite, não é?... Até parece que está a nascer o dia! E são quase cinco horas da tarde! Já viu?! Daqui a nada é noite escura...
Ficámos todas à espera, caladas. Não respondeu, olhou atentamente para o céu, para o relógio, para o jardim, para nós. Tirou devagar o saco que já pusera ao ombro.
- Pois é...
Virou-se e entrou no galinheiro. Voltou logo, agasalhado para a noite, na sua roupa de guarda, a velha farda militar comprada no Mercado do Ponto.
- Faz frio, dôtôra..., disse a disfarçar.
- É a humidade da noite, Sr. Semedo...
Eu e o Sr. Semedo tínhamos muitas histórias para contar...
Como aquela vez em que eu saí à procura de um remédio para o paludismo. Caíra a noite, faltava a electricidade naquela zona e a cidade estava às escuras, como acontecia frequentemente. Levei o meu cão, segurando-o com a trela bem curta com medo que os cães vadios o atacassem. Ele saltitava, olhando para todos os lados, curioso como sempre que ia à rua. O Sr. Semedo, empoleirado no alto do portão, alumiou-me o caminho com a lanterna, e o facho de luz chegava até ao virar da esquina. Depois, acendi uma pilha pequenina para ver onde punha os pés. No regresso, vi-o a espreitar, detrás das ripas de madeira do gradeamento branco. Abriu o portão a correr.
- Não saí daqui, dôtôra! Tinha o coração na boca! Sozinha na noite de S. Tomé! Só que o “compadre” também foi... E é valente que eu sei!
E fazia festas ao cão, agradecendo.
- É é guarda, como eu... De noite fica sentado comigo, a ler e a conversar.
- A conversar, senhor Semedo?...
- Sim, parece que fala...Bem, ele quer falar, só que não pode... Mas é guarda! Tomou conta da dona! O que fazia eu, se acontecesse mal à dôtôra!?”
E dizia-me, abanando a cabeça:
- Não posso esquecer!... É minha mãe... É filha também...O que era de mim sem a minha dôtôra?
- Eu sei, Sr. Semedo, mas já cá estou! Agora pode dormir descansado...
Pus-lhe a mão no braço. Desviou a cara, comovido, encolheu os ombros.
E, na tarde seguinte, tudo recomeçava:
- Dotôra, eu já contei? Acho que não...
- Não, Sr. Semedo, ainda não contou...
Baixava os olhos, respirava fundo:
- Pois é! Bem me parecia...
E recomeçava:
- Uma vez... "

(Ilhas na Bruma, UNEAS, S.Tomé, 2006)



o acordeão

O grupo de acordeão manouche "les não sei quê. Recordar l'acordeoniste da Piaf, L'accordeon do Gainsbourg Juliette Greco etc











http://www.youtube.com/watch?v=AMAjdsa3XFg

sábado, 18 de abril de 2009

O mistério Salinger



























Música sobre The catcher in the rye

http://www.youtube.com/watch?v=jMJxjDh5aH0


Canção sobre um mundo maravilhoso, de Stacey Kent






Jerome David Salinger nasceu em New York, na Park Avenue, no dia 1 de Janeiro de 1919, filho de um rico comerciante judeu e de mãe de ascendência irlandeso-escocesa.

Frequentou escolas públicas na infância e adolescência e foi, depois, estudar para a Academia Militar de Valley Forge, que frequentou de 1934-1936. Continuou os estudos na Universidade de New York, e na de Columbia, e aí começou a escrever contos para os jornais. Vai completar a sua formação na Europa: Londres, Viena, Paris, Varsóvia.

Por volta de 1940 tinha publicado histórias em vários jornais, incluindo the Saturday Evening Post.
Fez parte da 4ª Divisão de Infantaria como voluntário, na Segunda Guerra Mundial, prestou serviços de contra-espionagem em Inglaterra, estando em serviço em Tiverton, Devon, UK, em Março de 1944, experiência que lhe inspirou mais tarde a história For Esme -with Love and Squalor. Participou na invasão da Normandia, em 6 de Junho de 1944, onde assistiu a algumas das cenas mais sangrentas dessa guerra. Regressou aos Estados Unidos em 1946.

Depois de muitas recusas, Salinger publicou a sua primeira história no New Yorker, em 1948. E escreveu, quase exclusivamente, para esse jornal até 1965. O seu último relato conhecido é Hapworth, 16, 1924 (1965).


No entanto, Salinger é conhecido sobretudo pela novela, The Catcher in the Rye (1951), a história do adolescente, Holden Caulfield, que, expulso do colégio interno (na Pennsylvania), sem coragem para enfrentar os pais, anda "fugido" três dias, em New York.

Ao longo desses dias e noites consegue preservar a sua inocência apesar das várias aventuras em que se perde.
A linguagem viva e coloquial da narração, contada na primeira pessoa, os seus ataques ao mundo adulto e o olhar familiar-sentimental que encontramos na sua ternura pela irmã, Phoebe, tornou a novela muito popular e apreciada pelo público jovem.

Figura de adolescente inesquecível que, acima de tudo, não quer crescer e se choca com o mundo dos adultos. Como inesquecível é a irmã, Phoebe, criança adorável, inteligente, a única pessoa em que ele confia. Numa dessas noites, em fuga, volta a casa, na ausência dos pais, e o diálogo entre eles é é revelador dessa proximidade e grande ternura mútua.


Diz Caufield:
- Sabes o que eu gostava mesmo de fazer na vida? se me deixassem escolher? Lembras-te daquela canção que dizia se um coração encontra um coração que vem através do campo de centeio...

- Não é assim, corrige Phoebe, é "se um corpo encontra um corpo que vem através do centeio..." e diz-lhe que é um poema de Robert Burns. Ele sabia.

- Pois. Imagina todas aquelas crianças que brincam a não-sei-quê, no campo de centeio e tudo o resto. Milhares de criancinhas e ninguém a tomar conta delas, quer dizer ninguém que seja adulto -só eu. E eu estou à beira daquela porcaria da falésia. E só tenho que os agarrar se se aproximam demasiado da beira.Quer dizer, se correm sem olhar para onde vão, eu, atento, apanho-os! Era capaz de fazer isso o dia inteiro. Seria uma "apanha-corações" e mais nada..."

Esse mesmo Caufield que, depois de dar voltas e voltas a pé no parque a ver os patos do lago, diz ao motorista do taxi que o leva numa das noites por Nova Iorque:
- "Para onde vão os patos no Inverno, quando o lago de Central Park gela? Voam? alguém vem buscá-los e os leva?"
O homem vira-se para trás, furioso:
- És maluco? Sei lá eu! Nunca pensei nisso! Ainda se perguntasses pelos peixes..."

O jovem Caufield não quer crescer. Vai comprar um disco para oferecer a Phoebe com uma canção (Little Shirley Beans) que fala de uma menina que, quando lhe caem os dois dentes da frente, se fecha em casa porque tem vergonha.
A letra da canção é simbólica, porque é como uma imagem da infância, da inocência que inevitavelmente se vai perder ao correr dos anos e que Caufield não quer aceitar. Ele gostaria de parar o tempo, evitar a realidade que é o crescer, ficar adulto. Compra o disco e passeia-se com ele até que escorrega e o disco se parte em vários bocados, como se o "sonho" de não crescer se quebrasse e afinal não fosse possível...

Depois, segue-se a história-sequência, em vários livros, consagrada à excêntrica família Glass que começa com o conto A Perfect Day for Bannafish (Dia Perfeito para o Peixe-banana), publicado em 1949 no New Yorker, em que aparece pela primeira vez a figura de Seymour Glass que será o herói de outras histórias -contadas na primeira pessoa por Buddy, o irmão mais novo- mais tarde reunidas, com o título de Nine Stories (em 1953, esses nove contos são publicados em Inglaterra com o título de For Esme-With Love and Squalor).

Seguem-se Franny and Zooey (1961), e Raise High the Roof beam, Carpenters, e Seymour: An Introduction (estas duas são publicadas, juntas, em 1963).
Sobre a vida de Salinger de hoje pouco se sabe pois vive isolado há muitos anos em Cornish, no New Hampshire, não concedendo entrevistas e recusando qualquer tipo de publicidade. Uma entrevista em 1974 que deu a um jornalista do New York Times foi feita pelo telefone.

Sobre a sua vida passada: Salinger casou três vezes. O primeiro casamento foi com uma jovem, chamada Sylvia, que encontrou na Europa, e foi uma breve história. O segundo , com Claire Douglas, ainda estudante no Dartmouth College, deu origem a dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Depois de várias relações afectivas falhadas, Salinger casa, finalmente, com uma enfermeira chamada Colleen, 30 anos mais nova do que ele, com quem continua casado.
De carácter reservado, vivendo recluso, foi objecto de uma biografia, feita por Ian Hamilton (1988). Esta sua imagem de isolamento, com uma privacidade doentiamente preservada, conduziu a um interesse sempre renovado sobre o autor e a sua obra - que se mantém até aos dias de hoje.
As memórias escritas por duas pessoas que viveram próximas dele:
Joyce Maynard, sua ex-amante
e Margaret Salinger , sua filha

O que terá feito ou escrito durante estes anos de reclusão, detrás da sua máquina de escrever ? O que reservará aos leitores no futuro? Por que interessa ainda hoje a obra de Salinger?
Tantas perguntas a que tentará responder o leitor que o ler...
Devo dizer que li muito Salinger nestes últimos tempos. Reli a correr The catcher in the rye, e, logo, Nove Contos; li pela primeira vez "Carpinteiros levantem alto o pau de fileira" que tinha começado há muitos anos.
O título é estranho, mas penso que se encontra no texto uma tentativa de explicação: sugestão, apoio ? para os leitores.
A frase aparece pintada, a sabão, no espelho da casa de banho, por Boo Boo, a irmã mais velha, onde Buddy ( o herói-autor) vai ter num dia especialmente difícil - o dia do casamento de Seymour, o irmão amado, o herói de quase todas as histórias frase que ela escrevera para o noivo:
"Carpinteiros levantem alto o pau de fileira. Como Marte, aí vem o noivo, notável entre os poucos notáveis. Por favor, Seymour, sê feliz, feliz, com a tua bela Muriel. É uma ordem!"
Livro talvez mais irregular do que The catcher in the rye ( primeira tradução portuguesa, Uma agulha no palheiro, segunda, À espera no centeio) ou do que os "Nove Contos" -fantásticos- mas cheio da mesma ironia amarga, da mesma solidão do personagem central e dos outros a quem se chega, na sua procura.

Seymour é o irmão mais velho, o bem amado, o actor infantil famoso, a pessoa super-sensível, o falador incansável (Buddy chama-lhe "falador abusivo"), o contador de histórias ( logo no início Buddy lembra a vez em que ele conta à irmã mais nova, bébé de dez meses, uma lenda chinesa, para a adormecer, história de que ela jura lembrar-se quando cresce), Seymour o contador de estrelas e de constelações, o herói de muitas das outras histórias dos Nove Contos. O noivo dos Carpinteiros levantem alto o pau de fileira, que não aparece no dia do casamento porque se sentia demasiado feliz e não aguenta a intensidade do que sente, e passa, depois, a "raptar" a noiva...

Que vai depois passar a lua de mel à Flórida e numa manhã passada na praia (A Perfect Day for Bananafish), a pensar, a não-pensar, a não fazer nada e a sentir à volta o absurdo que se passa, ou talvez a não-sentir, volta para o hotel e...

Não posso contar.

Seria por isso que Caufield queria "apanhar" os corações? Para impedir que eles, na corrida doida, na precipitação, na ânsia, levados pelo vento, sofressem, caíssem e se perdessem?

Ou para evitar que crescessem (caíssem)?

Deixo-vos com uns versos de Vinicius de Moraes:

Se tu queres que eu não chore mais
Diz ao tempo que não passe mais...
Choro o tempo, o pranto meu...
Ele e eu...


Uma das últimas fotografias de Salinger

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Raymond Chandler: os livros e os filmes...





Raymond Chandler





Humphrey Bogart e Lauren Bacall













alguns livros de Raymond Chandler, na colecção Vampiro














Ouvir:

http://www.youtube.com/watch?v=I5XHmblowyY


(Homenagem musical do grupo de rock britânico, Robyn Hitchcock & The Egyptians, a Raymond Chandler, canção intitulada Raymond Chandler Evening, do álbum de 1986, Element of Light)





Todos os livros de Raymond Chandler me interessam, direi mesmo que me empolgaram e me deram um prazer enorme ao lê-los.

A propósito desse prazer da leitura, lembro o que o que diz Chandler em The Simple Art of Murder (ensaio muito inteligente sobre literatura policial). Referindo-se a Dorothy Sayers -que teria afirmado que a literatura policial nunca poderia atingir o nível da outra literatura porque é uma "literatura de evasão" e não "literatura de expressão"-, Raymond Chandler responde, simplesmente: "(...) essas designações pertencem a um gíria ligada a certa crítica, são palavras abstractas sem grande sentido. (...) Todos os temas dependem de quem escreve, e do que se tem dentro de si para os escrever. Tudo o que é escrito com vitalidade exprime vitalidade; não há assuntos estúpidos, há apenas espíritos estúpidos. Todos os homens que lêem se evadem de qualquer coisa refugiando-se no que está escondido por detrás das páginas impressas; a qualidadedo sonho pode ser contestada, mas os seus efeitos passaram a ser uma necessidade funcional. Todos os homens precisam de se evadir às vezes do ritmo mortal dos seus pensamentos secretos. Faz parte do processo de vida dos seres pensantes. Não considero de modo nenhum as histórias policiais como a evasão ideal. Apenas digo que tudo o que se lê por prazer é evasão, sejam os Gregos, a matemática, a astronomia, Benedetto Croce, ou o Diário do Homem Esquecido. Afirmar o contrário é ser-se um intelectual snob e um imaturo na arte de viver"(1)




Como dizer qual o melhor? Aquele cuja leitura me deu maior prazer? O mais amado?
Talvez O Imenso Adeus? (The Long Good-bye)












capa da edição brasileira, intitulada O Longo Adeus










O Imenso Adeus

O Imenso Adeus é, sem dúvida, para mim, um dos maiores romances da literatura policial americana de todos os tempos. E um grande livro tout court. Pela riqueza humana, profundidade psicológica, verdade das personagens e qualidade da escrita. Tudo isso. E, seguramente, um dos melhores do género de que Chandler foi um dos fundadores (o género policial série noir baseado na pulp fiction), com escritores como Dashiell Hammett, outro grande escritor.

Hesito muitas vezes escolher entre os dois: qual o melhor? O mais profundo? Ambos trazem agarrado nos seus livros o drama da humanidade em todos os pormenores.


No centro da trama do livro referido, está Philip Marlowe, o detective emblemático da literatura de Chandler, do período da recessão americana, que o próprio Chandler viveu (estava desempregado) no qual ambienta as suas novelas.
Nunca me esqueci que um dos seus contos começa assim: "Naquele ano até tive de andar de autocarro..." Ele, que andava sempre no seu Chrysler azul...





(A edição portuguesa d' O Imenso Adeus tem uma tradução muito boa de Mário Henrique Leiria, e uma capa -linda- de Cândido Costa Pinto.)






E, voltando a O Imenso Adeus, a intriga é complexa, mas o estilo é -aparentemente- simples. Tudo começa quando Philip Marlowe encontra Terry Lennox, bêbedo, no estacionamento de um night club e decide ajudá-lo.







1ª página do livro O Imenso Adeus

A abertura do romance revela um grande escritor, aqui vai:

"A primeira vez que vi Terry Lennox estava ele perdido de bêbedo dentro de um Rolls Royce último modelo estacionado à entrada do terraço do Dancers Club. O guarda do parque trouxera o carro à entrada ee segurava a porta porque o pé esquerdo de Terry Lennox ainda balouçava no exterior, como se le se tivesse esuqecido de que o tinha. Tinha uma cara jovem, mas o cabelo era branco como papel. Pelos olhos reconhecia-se que estava bêbedo até aos cabelos, mas de resto tinha um aspecto igual ao de qualquer outro tipo simpático vestindo um «smoking» e tendo gasto mais do que devia numa casa que existe precisamente para esse fim.
A seu lado estava uma rapariga. Tinha cabelos de um lindo tom de vermelho escuro e um sorriso distante; sobre os ombros o vison azul quese fazia com que o Rolls Royce parecesse um carro qualquer. Mas não o conseguia."

Romântico, sentimental, falso-duro, quase sempre um perdedor, hábil e fascinante, inesquecível, Philip Marlowe ocupa, dizem alguns, a galeria de honra dos grandes personagens da literatura universal.
Inicia-se, logo, uma amizade que será abruptamente cortada quando Lennox se envolve em sarilhos graves e Marlowe o ajuda a fugir para o México.
O Imenso Adeus é um clássico sobre a solidão e a amizade. Philip Marlowe e o enigmático Terry Lennox são as personagens centrais deste romance profundo e brilhante que lhes aconselho a ler...



O Grande Sono (O Sono Eterno)

A história de The big Sleep é considerada pela sua complexidade e fortemente influenciada pela tragédia grega, com várias personagens que se atraiçoam e muitos segredos que se vão descobrindo através da narrativa. O título (O Sono Eterno, 1939) pode ser uma metáfora de morte.

É a primeira aparição do detective privado, "private eye", Philip Marlowe.

Numa Los Angeles, mergulhada na depressão, Marlowe – detective particular que "trabalha por 25 dólares diários mais as despesas” – recebe a incumbência de um velho milionário: descobrir o autor das chantagens dirigidas a sua filha. Ao aceitar o caso Marlowe, encontra muito mais: homicídios, extorsão, jogo, droga e pornografia.

Chandler começou a ser publicado pela revista Black Mask, muito popular, a mais importante revista americana no campo da ficção policial "série noire" -que, também, publicou as histórias de Dashiell Hammett.

Raymond Chandler tivera uma formação cultural e educação superiores à média. Estudou num college inglês desde a adolescência, viajou, viveu em França e na Alemanha. Anos mais tarde, volta à América e é então que começa a escrever.
É verdade que esse trabalho foi lucrativo para Chandler e, como era coisa que gostava de fazer, foi continuando a escrever, e a ser publicado na Black Mask. O seu herói, Philip Marlowe, de 38 anos de idade, homem honesto -quase um cavaleiro andante dos nossos dias- aparece pela primeira vez no conto: Assassino à chuva (Killer in the Rain), cuja história, mais tarde, Chandler aproveitou para o seu primeiro romance, O grande sono, ( The Big Sleep (1939), que Howard Hawks transformou em filme, em 1943.


Farewell, my lovely ... Perdeu-se uma Mulher
















capa do livro em português:

Perdeu-se uma Mulher



Livro de um grande romantismo, poesia, na sua tradução portuguesa, chama-se Perdeu-se uma Mulher e tem uma capa bem sugestiva de Lima de Freitas.

Neste romance, o detective particular Philip Marlowe, necessitando uma vez mais de dinheiro, acaba por aceitar trabalhar num caso para o enorme (é quase um gigante), e pouco inteligente, gangster Moose Malloy, recém-saído da prisão. Malloy procura a sua antiga namorada, Velma, de quem não tinha há anos.


Marlowe investiga e descobre a morada da viúva, alcoolizada e velha, do ex-patrão de Velma, e consegue uma fotografia dela. E, a partir daí, começa mais uma acidentada aventura, em que os crimes, o mistério e o perigo são as constantes.
Teve duas versões cinematográficas, a primeira realizada por Edward Dmytryk, intitulada: Murder, my Sweet, 1946, com Dick Powell e Claire Trevor nos principais papéis e Farewell, my lovely, 1975, filme de Dick Richards, com Rober Mitcum e Charlotte Rampling ( e com uma intervenção fantástica de Shirley Temple, no papel da velha alccolizada).










Murder, My Sweet é a primeira versão tirada do livro Farewell My Lovely, por Edward Dmytryk (1946), com Dick Powell e Claire Trevor









Farewell my lovely é a versão cinematográfica mais recente, de Dick Richards (1975), com Robert Mitchum e Charlotte Rampling nos papéis de Marlowe e de Velma.





The High Window





capa da 1ª edição americana do livro The High Window










The High Window


The High Window, de Chandler (clicar: Raymond Chandler), publicada em 1942, é a terceira novela em que aparece o seu herói, o detective privado Philip Marlow da agência de detectives de Los Angeles. (ver: Los Angeles private detective Philip Marlowe).

A história começa quando Mrs. Murdock contrata um detective privado, Marlowe, para descobrir onde pára uma moeda rara, the Brasher Doubloon, que pertencera à colecção falecido marido
Marlowe inicia a investigação e logo se encontra metido numa série de homicídios inexplicáveis, acabando ele a fazer psicanálise ao assistente de Mrs. Murdock, do filho e dela própria... Porque Marlowe gosta de ir ao fundo do problema, "perceber"as causas, quer saber o que se passa na (alma) natureza humana, o porquê de uma atitude, tendo, para isso, que descobrir todas as peças do puzzle e pô-las no lugar certo.

Muito mais haveria a contar sobre os livros e sobre a biografia de Chandler: a Grande Depressão, o alcoolismo e absenteísmo, as tentativas de suicídio que levam à sua demissão de uma grande empresa, o seu começo na literatura policial, os contos que, insatisfeito, mais tarde desenvolveu e transformou em romances.

Interessa-me mais a obra dele. (para procurar uma biografia, basta clicar no texto, nas linhas coloridas o nome de Raymond Chandler.
Deixo-vos com umas apreciações, mas, antes de tudo, com uma frase do autor.

"But down these mean streets a man must go who is not himself mean, who is neither tarnished nor afraid." (*)
(Raymond Chandler, The Simple Art Of Murder)

Disse Erle Stanley Gardner que Raymond Chandler "foi uma estrela de primeira grandeza".
Ross MacDonald que "ele escreveu como um anjo vindo de um bairro da lata que encheu as ruas sem sol de Los Angeles com a sua presença romântica".
Billy Wilder, com quem não se entendeu bem, disse no entanto: "as suas descrições e diálogos são absolutamente notáveis!"
Truman Capote criticava-o, dizendo que "as intrigas dos seus livros são uma grande confusão".

Também lhe chamaram "bêbedo de classe internacional"...
Resta-me aconselhar-lhes que o leiam!

(*)Nota: tentativa de tradução da frase: “Por estas ruas violentas (mean é tão difícil de traduzir...), um homem que não é violento tem de seguir em frente, mas sempre sendo um homem sem mácula, e sem medo".




Músicas escolhidas para ouvir hoje...

Lou Reed, A walk on the wild side (com Raymond Chandler está-se sempre no "wild side")

http://www.youtube.com/watch?v=TceFKz2DZ9M


Brian Ferry, As Time Goes By (por causa do Humphrey Bogart...)
http://www.youtube.com/watch?v=zHG2LJGfEdw


Tom Robinson, Glad to be Gay (porque sempre gostei desta canção!)
http://www.youtube.com/watch?v=zHG2LJGfEdw


Brian Ferry, You do something to me (porque o Marlow também é romântico)
http://www.youtube.com/watch?v=7eEgaiGxqEQ

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Cesário Verde : Madrid, Paris, S. Petersburgo, o mundo!


Ave-Maria

“Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!”

(...)

(Cesário Verde, in O Sentimento de um Ocidental)

terça-feira, 14 de abril de 2009

o comboio da noite






o comboio da noite





















O comboio da noite


Sempre senti o fascínio dos comboios da noite, no Inverno. O mistério que têm, com a escuridão e o frio, as estradas cinzentas, as terras com as suas luzinhas que passam a correr, as estações em que se não pára. Tudo sugere a distância, o afastamento das coisas vãs, o movimento: a liberdade.

Imagino-me a viver a aventura que seria viajar no Transsiberiano ou no Orient Express, ou, ainda mais aventuroso, no comboio para Irkutsk, na peugada do cavalo do correio do Czar.
Ou, apenas, no wagon-lit que me levaria a São Petersburgo, a bela, longínqua, cidade de Pedro o Grande, adormecida ao pé das águas do Neva, com o rio Moika, a Fontanka, a laguna.

Imaginando, empre, as estepes desfilando, numa paisagem de neve, as florestas de abetos esguios, e de ulmeiros, com seus troncos brancos salpicados de cinzento esverdeado.

Não é exactamente assim o comboio da noite onde vou, o comboio que me leva a casa, seguindo ao longo da costa.
Hora de ponta. Sentei-me num dos poucos assentos que restavam. Os lugares do lado do mar estavam ocupados.

Fora, adivinha-se a sombra das águas, o cheiro da maresia, um pouco de cais branco e negro, as docas, a areia e os barcos na marinha, a lua reflectida no mar, ou o vermelhão do crepúsculo no horizonte.
Dentro, as pessoas bamboleiam o corpo, ainda rígido, a abandonar-se ao cansaço do dia de trabalho.

Rostos marcados, traços duros, olhar desconfiado, sem vontade de se entregarem, presos da tensão do dia que começara cedo e que ainda não acabara para muitos. Faltava a chegada a casa, outras preocupações para resolver, o jantar, os filhos. Mas acabam por se entregar ao bem-estar que os invade no calor da carruagem, e adormecem.

Uma rapariga, à minha frente, lê um livro volumoso. Com a gola do casaco levantada, prendendo nela os cabelos de um castanho dourado, estremece na carruagem aquecida e, pelo modo como segura as abas do casaco, bem apertadas junto ao pescoço, não parece ter apenas frio, parece ter arrepios de febre.
Duas senhoras iguais, na toilette pouco cuidada, nos cabelos amarelos mal pintados, com o mesmo corte vulgar, vão sentadas em lugares, frente a frente, falando, agarradas ao telemóvel.
Desesperadamente sós...
As conversas cruzam-se, interrompem-se, em vozes e modulações diferentes.
- Olha, querida, a mãe já vai no comboio, diz ao paizinho que estou a chegar...
A outra, numa voz irritada, gritava para o telemóvel:
- Não foi isso que se combinou na reunião, percebes?
E agitava a mão livre, afastando o cabelo da testa.
- Sim, filha, levo o que me pediste. E até uma sobremesa que tu gostas!, continuava a outra, num tom doce, com um sorriso que lhe mostrava as gengivas.
E a da frente continuava, abespinhada:
- Nem penses! Era o que faltava! Não cedo nada!
Atrás de mim, um pouco ao longe, uma voz de homem, impessoal, monocórdica, diz para o telemóvel:
- Minha senhora, os nossos serviços estão a par desse problema... Têm a competência... Claro, claro, assim que for possível... É do nosso interesse...
E as conversas continuam, interrompidas por uma ou outra exclamação, ou com silêncios pelo meio.
Olho para fora. Os prédios correm, com as luzes bruxuleantes da iluminação pública, as silhuetas desenhando-se detrás das cortinas dos prédios altos. A fila de carros no trânsito alonga-se, os farolins são uma mancha vermelha brilhando na esteira deles. Arrancam, travam, avançam, enquanto o comboio desfila, desafiando-os, ultrapassando-os a toda a velocidade. Do lado contrário, está o mar que não se vê, por detrás do espelho negro das janelas, onde se revelam em película colorida os rostos lívidos dos passageiros.
- Vai ligando o forno, sim? Beijinhos...
E esta desliga, olhando-se no vidro, ajeitando o casaco e o cachecol, feliz.
- Isso era o que eles queriam!, continua, teimando, a outra. Mas não foi isso que se combinou na reunião! Eu cá não aceito...
A rapariga do livro embrulha-se melhor no casaco, encosta-se ao vidro fresco da janela, procura uma posição para dormir, a cabeça descai devagarinho.
Os outros passageiros vão silenciosos, uns lêem o jornal que tiraram da rede do comboio, outros cederam ao torpor e dormem, de boca aberta.
Na minha frente, uma jovem mulher, com um casaco preto e uma bonita écharpe verde esmeralda, que lhe aviva a pele clara, tem no colo um monte de fotocópias, sublinha frases, fórmulas, números com um marcador amarelo, e aponta-os cuidadosamente num bloco de notas. Estuda, atenta ao que escreve. Ao lado, um senhor levanta-se para sair na próxima paragem, pede licença, e ela, distraída, ao querer dar-lhe passagem, deixa cair os papéis das mãos, consegue segurá-los com os joelhos, apertando a caneta nos dentes, sorri, desculpa-se. Senta-se outra vez, junta as folhas, põe a caneta e o marcador na mala de mão. Olha os outros passageiros, sem ver, dá um suspiro, encosta-se no assento e adormece. A cabeça vai abanando, docemente, ao sabor do movimento do comboio, ela não sente nada, não ouve o barulho em sua volta, sorri a dormir.

Na minha imaginação, continua a viagem eterna do comboio da noite, através das estepes, cheio de luzes, recortando figuras chinesas, pessoas invisíveis, ou a sombra de alguémque, detrás do vidro da janela, afasta as cortinas de renda na carruagem do wagon-lit.
O fumo sai pela chaminé da locomotiva e espalha-se na noite enevoada, o comboio vai apitando, e desaparece na mancha negra da floresta.

Dentro do comboio há suspiros de cansaço, de impaciência nas paragens, mas eu estou ausente, continuo a viajar. Há tanta beleza pelo mundo fora, paisagens de neve nos quadros, mar, uma árvore vermelha,à beira de um lago
E há sempre o comboio da noite...
Fecho os olhos e continuo o sonho.





o transiberiano






sábado, 11 de abril de 2009

a beleza...e Kawabata


http://www.youtube.com/watch?v=VNkUZ6y_Pkw

(a beleza da música: Cowboy Junkies,The Trinity Session)






























"A thing of beauty is a joy for ever" (Shelley)























Falei de uma descrição fantástica de Kawabata (Yasunari Kawabata, prémio Nobel em 1968), no seu livro Terras de Neve, que me impressionou e nunca esqueci.
Trata-se da viagem que famílias inteiras de japoneses fazem todos os anos para irem ver as florestas de acer rubrum, as árvores que se cobrem de folhas vermelhas, no Outono.

Espectáculo de certeza inegualável.
Decidi fazer uma pesquisa -na internet, claro- e fui à procura do que era esse tal acer rubrum que eu não conhecia. Fiquei um pouco com a ideia de que esse tal acer rubrum ("acer", ou "bordo", em português) pertencer à família do nosso plátano.
Descobri que existem exemplares na serra do Buçaco mas que no Japão, nos Estados Unidos (New Hampshire), no Canadá, é frequente esse tipo de árvores aglomeradas em florestas, manchas rubras contra o azul do céu.
Foi tudo isto o que encontrei... Que gostava que vissem.
Imagens de beleza...

... a que não resisti a juntar outras imagens de beleza...

















































































































e outras belezas...















a belíssima Piazza Navona

















Petra, na Jordânia














Transcrevo um pouco do livrinho de Kawabata, não resisti...



“Como o interior do comboio não era muito claro, aquele espelho não era tão nítido quanto deveria ser. E não reflectia bem as imagens. Por isso, enquanto Shimamura olhava compenetrado, foi-se esquecendo da existência do espelho e começou a pensar que a rapariga flutuava na paisagem do entardecer. Foi nesse momento que os raios de sol, já ténues, iluminaram o rosto dela. O reflexo do espelho não era suficiente para apagar a claridade de fora, nem esta forte o bastante para ofuscar a imagem reflectida no espelho. A claridade passava como um relâmpago pelo seu rosto, mas não era suficiente para o iluminar. A luz era fria e distante. No momento em que o contorno da sua pequena pupila se foi iluminando, como se os olhos dela e a luz se sobrepusessem, os seus olhos tornara-se um pirilampo misterioso e belo que pairava entre as ondas da penumbra do cair da tarde.”

Yasunari Kawabata,
Terra de Neve