quinta-feira, 21 de maio de 2009

A minha África outra vez: A Nina e a Tina







Chamavam-lhes "irmãs" por serem como duas gotas de água na maneira de ser: a mesma delicadeza, a mesma tranquilidade nos gestos, a mesma frescura do sorriso aberto. Eram o meu repouso e o meu refúgio no calor húmido de certos dias da ilha, na agitação interior, na dificuldade que tinha em respirar antes das chuvas caírem de repente.
Quando a luz "ia embora", como elas diziam, e o ar condicionado parava, a angústia pesava no meu peito, deixando-me exausta, num nervosismo incontrolado, ao acordar. Quando a água secava no poço e a minha sede era imensa. Era nesses momentos que a Nina e a Tina me amparavam: nos humildes gestos cheios de paciência, no espanto ingénuo diante das coisas da vida de todos os dias, na simplicidade de aceitar, apenas aceitar...
Chegavam de manhã cedo. A Nina no seu vestido de riscas azul-turquesa, com os cabelos pretos e brilhantes, que esticava em casa com rolos, os lôros chamava-lhes ela, e que prendia num travessão de pedrinhas coloridas. De onde eles fugiam, sempre, espetados.
Tenho saudades do sorriso tímido com que me dava os bons dias. Saudades das conversas com a Tina, na cozinha enorme do anexo da minha casa de S. Tomé, onde ela passava a ferro a roupa e, a seguir ao almoço, ficavam as duas a dormitar, com a cabeça poisada nos braços, ou encostadas para trás, no espaldar das cadeiras. Ensinavam-me a falar forro, o dialecto da terra, e riam quando eu fingia que sabia falar:
- Bonjao, Nina, como nova sa oji? É assim?...
- Sim! E, depois, a dôtôra deve responder : “oji sa levi-levi, balêladu”...
- "Balêladu"?

Era uma palavra estranha e doce... E eu continuava, a brincar:

- "Moála si sa glavi », Nina ?...
-"Eu, moála glavi?! Não, mulher feia, não, dôtôra, eu sou mulher bonita..., protestava, rindo devagarinho.
A Nina, que fora minha lavadeira anos antes, passara a trabalhar na cozinha, quando a Milly se foi embora, num dos seus ataques de fúria.
O gosto de aprender cada coisa, os gestos ritmados e vagarosos, a alegria tranquila depois de uma palavra de encorajamento, era assim a Nina. Os movimentos seguros mas suaves, o ar de gazela assustada, o sorriso, a adivinhar quando não percebia, enterneciam-me. A emoção contida aproximava-nos. Identificava-nos o mesmo pudor.
A outra irmã, a Tina, chegara nessa altura, para ser lavadeira. Mais velha, tinha uma inteligência viva, um ar sério, o equilíbrio numa forma de resignação, sem a timidez da Nina. Cada palavra sua era pensada, ia direita ao coração dos outros para os ajudar. A Tina era um filósofo, fatalista mas cheio de humanidade, um filósofo africano.
E a vida passava levi-levi. Nunca as ouvi queixarem-se, apesar de falarem da vida difícil, das doenças dos filhos, do paludismo que não largava as crianças, que as não largava a elas, que não largava a irmã mais nova da Nina, grávida, e, sempre, com paludismo.
- Como vai a vida?...
- Vai lentamente normal, dôtôra..., respondia ela.
Um dia houve um almoço com muitos convidados, e a Nina preparou tudo, atenta aos pormenores .
Estava uma tarde fresca, era a Gravana, os tons vermelhos e dourados estavam lá fora nos caroceiros junto ao mar, e a acácia do largo da igrejinha desconsagrada estava cheia de flores vermelhas, pensava eu, enquanto tomávamos o café na varanda.



Olhava, no meu jardim, a goiabeira perfumada, a papaia-flor, as caramboleiras, a cerca pintada de branco, junto à cancela da entrada. Foi nesse momento que tocaram à campainha.
A Nina atravessou a relva, no seu passo vagaroso, ficou a falar com uma rapariga da terra. De repente, desfaleceu. Tremeu, ergueu o braço sobre a cabeça, tapou os olhos com a mão e todo o corpo se agitou em soluços. Voltou a correr para a casa.
Procurei-a na cozinha. Lavava a louça, de cabeça baixa.
- Nina, o que foi?!
Olhou-me nos olhos:
- Oh! dôtôra! Nem sei como contar...A minha irmã piquinina morreu, com o bébé lá dentro... Paludismo...
Falava simplesmente, como se fosse uma coisa natural. Acontecia todos os dias, eu sabia, mas aquela resignação quase me chocava...
- Oh! Nina!
O que lhe podia dizer mais? Abracei-a com força.
- Descansa um bocadinho...Vai para casa, com a Tina, vai ver a tua mãe...
- Depois, dôtôra, depois... Tenho trabalho ainda para fazer...
Não quis descansar, não quis parar, acabou o serviço, como todos os dias, devagarinho.
- A gente sofre cá dentro, dôtôra, o que a gente sente não precisa mostrar..., ia dizendo.
A Tina, silenciosa, acenava com a cabeça.
Quando deixei S. Tomé, lembrei-me desse momento. Abraçava-a com força, como da outra vez, a despedir-me agora, e ela dizia:
- Eu vou chorar depois, dôtôra, o que a gente sente está cá dentro, dura sempre...
- Eu sei, Nina, eu sei... Não é preciso mostrar...
A outra irmã olhava-nos, a abanar a cabeça. A Nina tinha os olhos molhados e desviou a cara para eu não ver que chorava.

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