sexta-feira, 24 de julho de 2009

Histórias da casa amarela: "O Garruda"






Na minha rua havia uma taberna. A dona da taberna vinha espreitar cá fora, de avental aos quadradinhos empinado na barriga enorme, cabelos mal frisados e um grande sorriso. Via-a quando ia para a escola.
Lá estava ela, à ombreira da porta, afastando com a vassoura as franjas metálicas, que se usavam para não deixar entrar as moscas, e faziam um barulho estranho. Punha-se também a enxotar as galinhas que vinham para a rua, e cacarejavam de asas abertas. Mas o que ela gostava era de ver quem passava, ou dar conversa à vizinha da frente, a D. Mariana, uma senhora gorda e simpática, que se apoiava com os cotovelos no parapeito da janela e que tinha um filho aviador.
- Então, dona Mariana, o seu filho já por aí passou hoje?
E apontava para o céu, com a mão livre.
- Não, hoje ainda não o ouvi...
Enquanto agitava a vassoura, fingindo limpar o passeio, olhando para os dois lados, a mulher dizia, convencida:
- Bem me parecia. Mas como estou sempre lá para dentro, não oiço nada... Perco muita coisa do que se passa...
O filho da dona Mariana voava, certos dias, sobre a cidade. Via o avião descer, fazer um voo rasante acima da nossa rua, para a mãe saber que ele ia ali. E ela vinha à janela, tapava os olhos por causa do sol e às vezes, agitava a mão, quando ninguém estava a olhar. Eu também corria, assim que ouvia o roncar do aparelho e via-o ainda subir, pontinho preto a desaparecer, de repente, lá no alto.
Um dia falou-se na rua que o filho tivera um acidente e, na nossa casa, a Florinda que voltara do mercado, contava:
- Ai, meninas! Disseram que ficou com a pele da cabeça toda arrancada para trás, mas que depois no hospital voltaram a pôr-lha!
E olhava para nós com olhos arregalados, para nos assustar.
Eu imaginei logo um escalpe, como vira os índios fazer nos filmes do Oeste que passavam no Cine-Parque, no Verão.
Nunca se soube ao certo o que acontecera ao filho aviador da D. Mariana.
A dona da taberna continuava à porta, todos os dias. Tinha um dente dourado e dizia-me, com um sorriso que eu achava horrível:
- Olá, menina, onde vai?
Eu respondia baixinho, quase a medo:
- Vou à escola.
Vinha de dentro um cheiro a vinho azedo e a aguardente e ouviam-se gargalhadas dos homens que, desde manhã, ali estavam, a jogar às cartas, a falar da vida e a beber. Eu atravessava para o outro lado da rua porque o cheiro me enjoava e me sentia mal.

Da janela, via sair o “Garruda” da taberna. Era um homem sem idade, barba por fazer, vestido com um velho fato sem forma e um cachecol com uma ponta deitada para trás. Vinha sempre bêbedo e eu tinha medo dele.
Passava em frente da minha casa e recordo ainda a sua voz, grossa e aos soluços e vejo a dificuldade que tinha em manter o equilíbrio.
Ia a tropeçar até ao fim da rua, trocando as pernas, endireitando-se de repente, invectivando tudo e todos. Apontava para o céu enquanto falava ou esticava o dedo para os passantes que fingiam ignorá-lo ou se riam dele. O chapéu caía-lhe para um dos lados da cabeça e ele tentava pô-lo direito. Quando havia alguém à janela, tirava o chapéu, num cumprimento.
Eu, quando o ouvia, ia espreitá-lo. Largava as bonecas ou os jogos e via-o -da janela mais alta, pois não era capaz de o ver das janelas cá de baixo.
Nessas alturas, quando ele passava, fugia ou escondia-me detrás das cortinas para ele não me ver.
Ilustrações:
Paul Cézanne, a casa
Paul Céanne, a menina e a boneca
Paul Cézanne, homens a jogar às cartas
Klee, pássaros

1 comentário:

  1. Muitas vezes tenho saudades dos seres assustadores da infância. Porque desapareceram, e por isso são inofensivos, ou porque os que na actualidade me apavoram são MUTO mais anunciadores de temores e receios?
    Beijinhos, minha amiga

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