domingo, 19 de julho de 2009

Histórias da casa amarela: o meu Rossio
















Pela rua dos Canastreiros abaixo, a minha rua, saindo à esquerda, descendo sempre, ia-se dar ao Rossio.
O Rossio, o Passeio Público, onde, nas noites de Verão abafadas, quando o vento soão nos secava pele, íamos à procura do fresco debaixo das árvores do jardim.
Logo à entrada, depois de um largo, havia o plátano centenário que nos esperava com os troncos grandes como braços, as folhas com o desenho de mão aberta e as grandes bagas verde-amareladas, cheias de picos, que eu apanhava do chão para brincar.

Creio que uma vez por mês havia um mercado de queijos debaixo do plátano e, no Verão, vinham das aldeias vender melancias vermelhas ou rosadas, com as pevides pretas, que eu abria com os dentes para comer a sementinha branca.
Umas vezes era a Florinda e a Rosalina que nos acompanhavam, outras vezes, a minha avó e a tia Leopoldina. Os meus pais ficavam com a mais pequenina em casa, a ouvir música, com as janelas abertas para fazer um pouco de corrente de ar. Outras vezes, iam ao Cinema, na esplanada do Cine-Parque.
O Rossio era um terreiro amplo, que ia subindo, com árvores dos dois lados, canteiros de flores e bancos de pedra corridos, onde nos sentávamos.
A meio, ficava o coreto, de formas elegantes, que eu achava lindíssimo. Recordo as noites de domingo em que a banda vinha, de Verão, tocar. Os instrumentos brilhavam e os músicos, nas suas fardas azuis, limpavam o suor com grandes lenços, nos intervalos.
Um pouco mais adiante, havia um cedro enorme, de rama cerrada, por debaixo do qual, alguns anos mais tarde, apareceu uma esplanada com mesas e cadeiras de ferro pintadas de branco.
Costumávamos sentar-nos, então, com os meus pais, e bebíamos refrescos de groselha bem vermelha ou limonadas. O meu pai e a minha mãe gostavam de ficar até tarde, a tomar café e a conversar com os amigos. Eu adorava essas noites, gostava de os ouvir falar, parecia-me que aprendia coisas novas. Jogávamos às cartas, ao jogo dos palitos chineses, com fósforos, e lembro-me da atenção que tinha, ao pôr os dedos bem esticados, para não fazer tombar o monte de fósforos. Mas isso foi muito mais tarde, já eu era adolescente e não brincava no Rossio.
Ao cimo do jardim, ficava uma cascata, na zona que se chamava Caganita, cheia de pedrinhas e de plantas de folha pequenina, por onde a água escorria, e só o vê-la, refrescava no calor da noite.
A minha avó, quando vinha, sentava-se num banco, muito direita, a conversar com a tia ou com outras senhoras, ou, apenas, calada a olhar.
A minha irmã e eu corríamos o terreiro, para cima e para baixo, tirávamos flores, jogávamos ao “agarra”, à “cabra-cega”, ao “macaco”, porque havia sempre meninas da nossa idade que iam com as mães ou avós passear ao Rossio.
Lembro-me de uma história. Nela está a minha avó tal como era, com um grande coração, mas possessiva, com sentimento de protecção em relação a nós, como se fôssemos gatinhos pequenos, indefesos.
Uma noite, um miúdo, na brincadeira, deu um empurrão à minha irmã mais velha, ela caiu e magoou-se. Foi chorar para o pé da avó que ficou furiosa. Consolou-a com uns rebuçados que trazia sempre na mala, e não disse nada ao rapazito. Passado um bocado, chamou-o, com voz suave.
- Vem cá, meu menino. Queres um rebuçadinho também?
Ele foi, talvez um pouco receoso, pois devia ter a consciência intranquila, mas, ao mesmo tempo, guloso, não soube resistir aos rebuçados. A minha avó pegou-lhe na mão, sorriu, meteu-lhe um rebuçado na mão mas segurou-lhe o dedo mendinho e apertou-o com tanta força que eu vi que ele fez um esforço para não gritar.
Olhando para o fundo do Rossio, eu via a cidade branca, por cima do plátano, no escurecer da noite: a Sé, os pinheiros, a estrada para a Penha e um pouco do castelo nas nuvens e os campos a perder de vista. Respirava fundo, feliz, e corria a rincar com a minha irmã.
Por vezes, no regresso com a Florinda e a Rosalina, cansadíssimas já, a minha irmã que nunca estava contente ao voltar,antecipava-se a nós, abria o postigo da porta, metia a mãozinha pequena pela abertura e abria o fecho da porta. Depois, fechava a janelinha do postigo e batia com a porta. Ninguém podia entrar pois não levávamos chave.
Escolhia as noites em que os meus pais estavam no Cine-Parque, ou tinham ficado no café até mais tarde, e restava-nos ficar sentadas nos degraus da casa em frente, ensonadas, encostadas ao ombro da Florinda, ou no colo da Rosalina à espera que eles voltassem e nos abrissem a porta.
Eram assim os nossos passeios, nas noites quentes de Verão, no Rossio.

1 comentário:

  1. E Portalegre perdeu a magia aqui contada e, o que muito me entristece, parece nada ter recebido em troca! O velho plátano, o coreto, lá continuam, decerto partilhando memórias lagóias...

    Beijinhos conterrâneos

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