terça-feira, 29 de setembro de 2009

Georges Simenon esse fenómeno -como diz André Gide...Saíu em Paris o seu "Autodictionnaire" apresentado por Pierre Assouline














































































































Em Setembro, festejando os vinte anos que passaram sobre a morte do grande escritor belga, saíu, em França, um livro escrito com o que Simenon "disse" e "escreveu", "falou", "comentou": é o seu "Autodictionnaire"(1).




A televisão Eurochannel durante o mês de Setembro também homenageou Georges Simenon com um ciclo de filmes sobre o Inspector Maigret.



Pierre Assouline é o inventor do tal "autodiccionário": foi ele que teve a ideia, juntou em ficheiros com milhares de páginas tudo o que pôde - tarefa não-fácil, desproporcionada... Como o era o escritor a que se dedica: Exagerado, excessivo emtudo... excepto na feitura dos romances que, esses, têm uma estrutura perfeita, equilibrada).
Não devemos esquecer que Simenon não é só um autor de livros policiais: há os seus romances" duros" -"les romans romans", como ele lhes chama -obras de grande fôlego do dia a dia, das vidas das "pauvres gens" de que tão bem sabia falar.
Dos dias que vivem sozinhos, frustrados, sofrem, odeiam, invejam e se vingam. Dos que sofrem porque são agredidos, porque são maltratados e não têm coragem para fugir de um destino que os marcou à nascença. Dos que procuram esse destino e o seguem quase involuntariamente, sabendo que lhes vai ser fatal.

Simenon é um "fenómeno", o fenómeno Simenon, como lhe chamava o grande André Gide...
Que "fenómeno", afinal?

Da Wikipedia: "Georges Simenon foi um romancista de uma fecundidade extraordinária: escreveu 192 romances, 158 novelas, alem de obras autobiográficas e numerosos artigos e reportagens sob seu nome e mais 176 romances, dezenas de novelas, contos e artigos sob 27 pseudónimos diferentes. As tiragens acumuladas dos seus livros atingem mais de 500 milhões de exemplares. É o autor belga, e o quarto autor de língua francesa, mais traduzido em todo o mundo. O seu personagem mais famoso é o Comissário Maigret, personagem de 75 novelas e 28 contos."
E quando estava cansado de escrever... começava a escrever uma história com o inspector Maigret, para descansar.
Sim, porque era assim que repousava: a escrever..
Pierre Assouline, na entrevista que lhe faz a revista francesa, "Nouvel Observateur", falando da figura e biografia “excessivas” de Simenon e do seu extraordinário poder de trabalho conta como André Gide se sentia fascinado com a sua “mecânica narrativa”. De facto, devora os seus romances à medida que saem...
"No total, diz Assouline, escreveu 400 romances, (70 do Comissário Maigret), viveu em 33 domicílios diferentes, diz ter tido 10.000 mulheres... "
De facto, excessivo...
Recordemos um pouco da biografia e da obra de Simenon:
Quando chega a Paris vindo de Liège, nessa época -os famosos anos 20- aprofunda o seu conhecimento do meio boémio, das prostitutas, dos bêbedos, dos anarquistas, e dos artistas e mesmo futuros assassinos. Frequenta também um grupo de artistas chamados "La Caque", onde encontrara uma estudante de Belas-Artes, Régine Renchon, com quem se casa em 1923.

São os anos da descoberta da grande capital que aprende a amar com as suas desordens, os seus delírios. Parte para a descoberta dos bistrots, brasseries e restaurantes e cabarets, encontrando seus personagens na população parisiense, artesãos, serviçais, pobres das ruas.

Encontra também Joséphine Baker por quem tem uma grande paixão, indo de férias com ela para a ilha de Aix (1927).


Entretanto casara com Tigy segundo ele próprio conta: "para não fazer muitas asneiras..."

Em 1928 faz uma longa viagem de barco, para suas reportagens, descobrindo a água e a navegação, que aparecem sempre em sua obra.
Em 1929 decide fazer uma viagem pela França, explorando os canais num barco que mandou construir, o ‘’Ostrogoth’’, no qual viverá, com Tigy, e a criada, Boule, até 1931.
Em 1930, numa série de novelas escritas para ‘’Detective’’, uma colecção nova criada por Joseph Kessel, aparece pela primeira vez o personagem ‘’Comissário Maigret’’.





Descobre, também, por essa altura, uma paixão pela navegação e por La Rochelle, onde no "Café de la Paix’’, -que aparece em obras suas e se tornaria seu quartel-general- pediu uma garrafa de Champagne ao ouvir a declaração de guerra alemã em 1939; ante ao espanto dos presentes, disse: "ao menos não será bebida pelos alemães".


Passa a morar em La Rochelle, onde nasce seu filho Marc, em 1939, filho de Tigy (Régine, pintora, belga como ele, com quem casara em 1923).















Em 1945, depois do fim da guerra, vai viver nos Estados Unidos, percorrendo nos dez anos seguintes o continente, para saciar sua curiosidade e seu apetite de viver, quase diria, bulimia de viver...

Durante esses anos americanos, visita sempre Nova Iorque, Flórida, Arizona e a Califórnia e toda a costa Leste, milha a milha, os motéis, as estradas e as paisagens grandiosas.
Vai conhecer a sua futura segunda mulher, a canadiana Denyse Quimet, 17 anos mais nova, com a qual vai viver uma paixão intensa de ciúmes, discussõe e álcool.
Denyse que vai ser sua secretária e, depois, mulher e com quem tem 3 filhos: Jean, Marie-Jo e Pierre. Ligação acidentada, violenta, possessiva, doentia. Que continua para lá da separação, com livros escritos pelos dois -vingando-se ("Un oiseau pour le chat", de Denyse Simenon, é um exemplo disso), ofendendo o outro no que escrevem. Que vai marcar o destino da filha, Marie-Jo, muito ligada ao pai e que não aguenta, suicidando-se aos 25 anos.




Escreve vários textos autobiográficos, desde "Pedigree".

Des traces de pas” espécie de diário que começa em em 20 de Setembro de 1973 e acaba a 30 de março de 80 (publicado em 1975, por Presses de la cité)

Em 1981, dois anos depois do suicídio da filha, publica
Mémoires Intimes" (seguidas do "livro de Marie-Jo": cartas, poemas, bilhetes de Marie-Jo escritos ao pai desde Dezembro de 72 até 1978, a última carta, sem data).

No prefácio “carta-dedicatória datada de 16 de Fevereiro de 1980 começa um diálogo (monólogo) com Marie-Jo.


Já no fim da vida conhece a italiana Teresa que vai ser a companheira dedicada, atenciosa, suave, dos últimos anos. Simenon morre a 4 de Setembro de 1989, há vinte anos pois.









No "Nouvel Observateur" de 10-16 de Setembro de 2009, sai essa longa entrevista -que acima referi- com Pierre Assouline, escritor e biógrafo de Simenon ("Simenon"), autor do tal "autodiccionário" de Simenon.

Quando o entrevistador lhe pergunta se também ele, Assouline, é excessivo -tendo em conta o trabalho que fez: as milhares de páginas que teve de ler, cartas, “files”, entrevistas ou intervenções que ouviu, cartas inéditas, ficheiros etc. na rádio ou na televisão sem citar a sua [de Assouline] enorme bibliografia, os inúmeros livros publicados, o blog, prefácios e artigos que escreve, etc, Assouline responde:
Nem pensar: eu escrevo um livro por ano. Ele escrevia cinco. Tudo nele é coerente [na desmedida]: nasceu sob o signo do excesso. Quando fala é durante horas; quando escreve é um livro de 3 em 3 meses e perde 5 kg por livro; quando escreve cartas são 10 por dia; quando ganha dinheiro é uma fortuna; quando é adaptado ao cinema passa a ser o escritor “mais adaptado”...
Não é só Assouline que se "espanta" com este escritor: é o leitor comum que pega num dos seus romances e lê, lê até o acabar, sem largar um momento; é o professor sueco que ensina francês com o livro "Maigret et le clochard" porque considera que nesse livro está tudo o que é preciso para se ficar a saber o essencial do francês falado; são as inúmeras colecções que o publicam nas línguas faladas neste mundo: traduções em dezenas de línguas.....


E é o conhecido e exigente escritor francês, André Gide, que já em 1938 se espanta. E fala de "fenómeno". E refere sua fantástica "mecânica narrativa"dos seus romances. De facto, por causa dessa narrativa, lê os livros de Simenon uns atrás dos outros à medida que vão saindo:


É André Gide que diz na "Correspondência Georges Simenon-André Gide", intitulada: "...sans trop de pudeur, Correspondance 1938-1950" (prefácio e notas de Dominique Fernandez e a edição é curada por Benoït Denis, da Universidade de Liège, Carnets, Omnibus), em carta de 31 de Dezembro de 1938, dirigida a Georges Simenon:
"Todos estes livros [seus] (os que publicou de há dois anos para cá) espantaram-me imenso, especialmente "Le Cheval Blanc" que acabei mesmo ontem à noite e do qual li algumas páginas a Jean Schulemberger e depois a Roger Martin du Gard: as do extraordinário diálogo entre Arbelet e o Tio Felix, que me encantou."

Mais adiante acrescenta, quando lhe diz que planeava escrever um longo artigo sobre Simenon:




"Mas, o que queria dizer, precisamente, no meu artigo [sobre si], é o curioso malentendido que se estabeleceu no que diz respeito a si; passa por um autor popular e a verdade é que não se dirige ao grande público (gros public). Os próprios temas dos seus livros, os mínimos problemas psicológicos que levanta, dirigem-se aos delicados, aos sensíveis; àqueles que, precisamente, pensam, enquanto o não lerem: "Simenon não escreve para nós." E, no meu artigo, quereria dizer-lhes que se enganam..."


Num pequeno dossier com alguns rascunhos de Gide para o tal artigo (que aparecerá nos "Cahiers du Nord, 1, 2 (13º ano -1939)", número dedicado a Simenon, escreve:
"Simenon tem admiradores por toda a parte e mesmo os que se fazem esquisitos e dizem: "Oh, Simenon escreve de mais! (...) desejo declarar que considero Simenon um grande romancista, o maior talvez e o mais verdadeiro que temos hoje em França."
E logo adiante fala dos temas, das personagens escolhidas, as tais "petites gens":
"A horrível mediocridade da vida quotidiana. o Esforço desesperado, criminoso para escapar ao aborrecimento (l'ennui), ao cansaço de andar à roda. De repente, um sobressalto fortuito, provocado por quase nada e eis que o autómata sai da pista do seu carroucel. É uma inconsequência que dura apenas um instante, e toda a vida que lhe resta para viver a seguir é para se arrepender. Oh! não nada de arrepemndimento religioso, simplesmente não pode voltar para trás para dentro da sociedade daqueles que continuam a andara à roda como antes."
Provas dessa "atracção" que as obras de Simenon exercem são os infindáveis número de filmes tirados dos seus livros (rivaliza com a outra grande, Agatha Christie), as inumeráveis séries do Comissário Maigret: há um Maigret em toda a parte do mundo, em todas as nacionalidades..


De Jean Gabin, o fascinante e inesquecível actor que é sempre bom. (Acho que só os actores ingleses têm essa prerogativa: como Laurence Olivier, Dirk Bogarde, Michael Caine, Anthony Hopkins - ou o americano Spencer Tracy ou ainda Dustin Hoffman.)


Depois de Gabin, vêm outros franceses: Jean Richard, Bruno Cremer (na foto ao lado); o inglês Michael Gambon (em baixo, com o célebre cachimbo de Maigret); o italiano Gino Cervi.


Haverá já um Maigret japonês? Virá a aparecer um Maigret chinês?


Nada me surpreende neste campo...


Bem, mas para fazer um Maigret não são todos os actores que servem, confesso...


É uma personagem única, na sua simplicidade, na sua filosofia de "comprendre et ne pas juger...", não lhe competem os julgamentos: ele tenta apenas compreender e é nesse esforço de se abrir aos outros, entender todos os mundos por mais estranhos que parecçam, saber as razões profundas que levam a um acto que se sente a enorme humanidade que o torna exemplar.
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(1) "Autodictionnaire Simenon", por Pierre Assouline, Omnibus, 810 páginas, 26 euros.
(2) Pierre Assouline, nascido em 1953, é um jornalista e romancista francês. Escreveu várias biografias de escritores entre elas a de Georges Simenon, intitulada "Simenon". Escreve um blog muito conhecido em França, "la république des livres".
Alguns livros importantes sobre Georges Simenon:
"Simenon", de Pierre Assouline
"Georges Simenon, romancier de l'instinct", de Pierre Debrey-Ritzen, Editions Favre, Zurique, 1989
"The man who wasn't Maigret", de Patrick Mqarnham, Bloomsbury Publishing, Londres
"Correspondência Simenon-Gide ...sans ombre de pudeur", Carnets Omnibus, Paris
Correspondência Simenon-Fellini "Carissimo Simenon-Mon cher Fellini", Adelphi, Roma
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Ilustrações:
1. fotografia de Simenon com Jean Cocteau, em 1963, no Festival de Cannes.
2. capa do romance "Port des brumes", colecção Livres de Poche
3. Jean Gabin e Simone Simon, num filme em 1938
4. Quadro de Theo Van Risselbergue, pintor e amigo de Gide cuja mulher "la petite dame" como lhe chama os amigos foi uma das melhores amigas de Gide
5. "Un corps sans tête", publicado em francês na Russia, 2001
6. Capa e contra-capa da mesma edição escolar, Editions Raguda, com pequeno glossário francês-russo (ainda se vê o preço no verso: 46 rublos)
7. foto de Georges Simenon, 1960
8. capa do DVD da série einglesa dedicada ao Inspector Maigret, com o actor Michael Gabon
9. Joséphine Baker, grande cantora e bailarina dos anos 20
10. "Maigret tend un piège", capa com Bruno Cremer
11. filme francês "Maigret voit rouge", realizado por Gilles Grangier, 1963, com Jean Gabin
12"Des traces de pas", livro-diário de Simenon, Presses de la Cité, Paris, 19
13. "Mémoires Intimes", Presses de la Cité, Paris, 1981
14. capa de um DVD "Maigret"
15. André Gide, escritor francês (
16. André Gide, jovem
17. o actor francês Bruno Cremer, um dos melhores Maigret
18. o actor inglês Michael Gambon

domingo, 27 de setembro de 2009

Histórias: 4 mulheres e um cão... 1ª: mulher Hassnâa, Marrocos

Uma canção de Oum Kalthoum
http://www.youtube.com/watch?v=FFZYOVskiSQ




Vinha pelo corredor de manhã, a cantarolar, e adivinhava o movimento ondulante do seu corpo, que o ar de dança imprimia ao corpo, figurinha de tânagra, delicada nos gestos, de tornozelos grossos e mãos estragadas pelo trabalho.
Metia a cabeça pela porta e perguntava:
-Saïdati? Madame...Queres que te traga já o pequeno almoço? Café com leite?...
Era musical a maneira de falar.
Entrava, suave, e dava-me três beijos na face.
-Bom dia, saïdati! Dormiste bem?
A alegria da manhã entrava pelo quarto com o sorriso dela. Lembro-a assim, hoje, depois de tudo ter acabado.
Chamava-se Hassnaâ que quer dizer “bela” e cantarolava, a brincar, com uma músiac inventada por ela:
“Hassnaâ-la-belle...
Hassnaâ-la-moche...”
Acabando por concluir, sempre:
-A Hassnaâ-la-moche, a feia, sou eu...

A minha casa de Marrocos era bela e estranha na sua desmesura, e cheia de armadilhas, achava eu. Degraus altos para o jardim, desníveis no sobrado, pisos inclinados, uma escada de caracol, vidraças escondidas.
Durante muito tempo tropecei, caí, bati com a cabeça nos vidros. Como uma borboleta cega.
Senti-me prisioneira do jardim fantástico, com espaços arejados e luminosos, cheios de beleza e de cor, mas rodeado de grades, onde me sentia enterrar todos os dias.
Pensei que era uma casa assombrada. Por mortos que não tinham podido ser ali felizes?
Ou seria a Hassnaâ o seu feitiço?
No fim, todos disseram que era perversa, louca, que aterrorizava as pessoas da casa. Não seria ela, pelo contrário, o contraveneno desse mal, na sua alegria constante - enquanto a alegria durou?

Ela cantava e ria: “Hassnaâ-la-belle? Hassnaâ-la-moche?...”
-Eu sou o patinho feio, não é, saïdati! A bela é a minha irmã Hassaniah! Ela é boa. Reza ao meu Deus, sempre, e Allah gosta dela...
-“E de ti?”
-“Se calhar não gosta...”
Mais tarde, quando tudo na vida dela se desmoronava, lembro-me que me disse:
-Se Allah quer, eu sofro e aceito...
Hassaniah era a irmã gémea, o seu oposto, calada, séria, religiosa, que vivia numa aldeia fora de Rabat. Um dia, via-a dizer a oração da tarde. Desdobrou diante de nós uma serapilheira e ajoelhou-se, virada para Meca, inclinada, de olhos fechados, apoiando-se nos dedos flectidos dos pés, descalços.
Hassnâa apontava para os dedos dobrados e dizia, irónica:
-“Allah, o meu Deus ...
Ela dizia sempre: “o meu Deus”. Parava, sorria e continuava:
-Ele gosta muito dos dedinhos dos pés assim dobrados...
Com uma forma de infantilidade no olhar, entre o sério e o riso, como se aquele espectáculo fosse para ela também um divertimento, continuava:
-Saïdati, está com atenção agora. Ela vai pedir coisas para nós, que eu disse-lhe! Estás a ver? Mexe os dedos das mãos...
E de facto Hassaniah, de olhos fechados, a boca cerrada, concentrando-se na sua interioridade, ia abrindo um a um os dedos da mão esquerda e depois os da direita, como se contasse os pedidos que fazia.
-“Hassaniah-la-belle...”, dizia eu, baixinho, a brincar.
-E “Hassnaâ-a-feia”, continuava ela em voz alta.
“Achas que eu sou a feia, a má, não achas?...”
-Não! És bonita e és boa!
Gostava de cozinhar, de arrumar a casa, e tudo o que saía das mãos dela era perfeito. Dizia sempre: “ eu sei...”
-Saïdati, faço-te um bolo?”
-Não.
-Queres tajine de galinha?”
-Sim...
-Saïdati, queres ouvir esta música?
E lá trazia uma velha cassete que ouvíamos no aparelho.
-É uma música antiga, dos velhos tempos da Oum Kalthoum (*).

Sentia o fascínio da música, do espectáculo, das telenovelas egípcias, da agitação constante. Cantava ao mesmo tempo que ouvia a música, e ia dançando. Queria convencer-me a gostar de tudo o que ela amava.
-Um dia gostava de ir cantar à televisão, achas bem? Há concursos...
-E por que não hás-de ir? Cantas muito bem!
-De verdade?
Calva-se de repente, ficava triste:
-Não posso..., o meu irmão Abdullah não deixa... O Samir não se importava, mas ele não manda nada, é o mais novo... Também gostava de ser actriz...
E ficava a pensar.
A casa enfeitiçada acabou por me apanhar nas suas malhas. Caí da escada de caracol e fiquei imobilizada, de cama, mais de um mês.
Era a Hassnaâ que vinha fazer-me companhia, ajudar-me a levantar. Ajoelhava-se no chão ao lado da cama até eu a mandar sentar.
-Posso falar, ou queres descansar?
-Podes falar...
-Quando te cansares, eu calo-me...
E contava, contava, de mãos cruzadas sobre o avental. Pequena Sherazade de todos os dias, ia contando histórias sem fim nem começo. Da casa pobre onde toda a família vivia porque o pai não tinha sabido ganhar a herança do tio-avô.
-O Miloud não tem boa cabeça...
-Quem é o Miloud?
-É o meu pai...Tem uma cabeça “srera”...
“Quer dizer "pequena”, explicava-me... Srera, kbira...
-Não sabe pensar, nem tratar de negócios. Trabalhou em França, voltou e sempre sem dinheiro...
-Que culpa teve ele, coitado?
-Teve! Teve... O meu tio ficou com tudo, porque é esperto! Tem uma linda casa em Taza, na montanha.
Olhava lá para fora, pensativa, como se imaginasse no meio das árvores do jardim, entreos ibiscos vermelhos, côr de chá, e as buganvílias, a casa de Taza que o pai não soubera ter...
- E nós? Nada...Temos todos que trabalhar lá em casa! O Miloud não trabalha, claro, já está velho e cansado...
Contava do irmão que ia casar com uma mulher gorda de que ela não gostava.
-Não trabalha, está sempre a comer... É feia e gorda!
Falava da irmã, Samirah, alta e bela, que tivera uma menina e se recusara a tratar dela porque estava doente.
-Eu é que fui mãe dela. Ainda hoje chora quando me vê, tem saudades minhas...
Contava da avó que se fechava na sua divisão minúscula, com uma manta pendurada do tecto a fazer de porta, e que ficava sentada no chão a comer de três tachos diferentes.
-Três tajines! E sempre com fome! Só sabe comer...e dizer mal dos outros!
E acrescentava, irritada:
-E faz maldades!
-Que mal é que ela faz?
-Não gosta da minha mãe, fá-la chorar. É um diabrete! Lá em casa, vira uns contra os outros... Ouve as conversas às escondidas e vai contar tudo ao meu pai! Arranja sarilhos e depois fica-se a rir.
Perguntava:
-É má, como eu, não é saïdati?
Não tinha estudado e, às vezes, lamentava-se. Dizia, com ar sonhador:
-Podia estar agora a aprender como a Hassaniah...
A Hassaniah estudava na sua mesinha de trabalho dentro dum armário porque não havia mais espaço na pequena casa.
-Parei muito cedo, era preguiçosa. Se soubesse francês, se calhar podias levar-me um dia para a Europa. Só estudei bem a língua árabe... Queres ver como eu escrevo?

E tinha, de facto, uma linda caligrafia, desenhada, de arabescos perfeitos.

Não sei quando me apercebi da mudança nela. O Ramadão tinha calhado no mês de Novembro. O jejum, a alteração dos hábitos, trouxera o desequilíbrio? Acordava de madrugada para comer, andava sonolenta o dia inteiro, com as pupilas dilatadas. Sentia-se fraca, com tonturas, tinha frio. Às vezes, embrulhava-se num velho cortinado azul, outras, ia sentar-se ao sol, horas perdidas.

-Ouvi uma voz chamar-me..., dizia, quando entrava em casa. Foste tu?
-Não...
-Os pássaros falaram comigo...

Uma noite, por altura do Natal, ficámos as duas a ver a televisão. Imagens belas, músicas festivas, crianças que sorriam e cantavam cânticos doces. Ela olhava de olhos muito abertos.
De repente, como se saísse de um sonho, disse-me:
-Saïdati, quero dizer-te uma coisa...
-O quê?
-Vou devolver umas prendas que me deram...
-Prendas? Quem te deu prendas? Não conheces aqui ninguém...
-Deu-mas um homem que trabalha ali em frente, nas obras.
-E deu-tas, porquê?!, estranhei.
-Não fiz nada de mal! Dei-lhe uma tigela de harira, no Ramadão, uma ou duas vezes, quando dava ao Brahim... E ele quis agradecer-me...
O Brahim era o nosso guarda berbere, a quem ela dava ordens, gritava e que dominava.
-E depois?
-Nada...Não fiz nada!
-E então por que é que lhas devolves agora, se não fizeste mal?...
-Porque ele agora quer fazer amor comigo e eu não quero.
Olhei para ela, pasmada. Parecia-me uma desconhecida, de repente.
-Não és tu que devolves nada. Vais dizer ao Brahim para lhas dar.
-Sim, saïdati...

Dias depois, esse homem saltou o muro do jardim, entrou dentro de casa e quis fazer-lhe mal. Era ao fim da tarde e pareceu-me ouvir gritos abafados lá em baixo. Desci a correr as malditas escadas de caracol, onde tinha caído, e vi uma sombra fugir. Ela estava imóvel de olhos espantados e sem medo.
-Fez-te mal?
-Não...
-Mas queria?
-Sim.
E aí começou tudo. A polícia, os interrogatórios, as acusações. Toda a lama caíu sobre ela. Acusaram-na, sobretudo o guarda berbere. Que ia ter com aquele homem de noite, que bebia álcool durante o Ramadão, que era depravada, cheia de doenças.
-Bebe, fuma hashish...
-Hashish?
-Fuma, sim, dizem que fuma...
Ela empalidecia e defendia-se. Agredia com as palavras, excitada, frenética.
Diante dos inspectores que vieram no dia seguinte, sentou-se, calma, e apresentou uma queixa contra o agressor.
-Não sou eu a culpada! Foi ele...
E começou a contar. Eu olhava para ela, querendo acreditar no que dizia.
-Acredito em ti, Hassnaâ...
Mas sentia-me insegura.
-Ela não é normal, dizia um dos polícias. Uma mulher árabe não fala assim! O que é que se passa dentro daquela cabeça?

Lembrava-me de a ver brincar com as formigas, agachada detrás da porta da cozinha.
-"Hassnaâ! O que estás a fazer? "
-"Estou a rezar a Sidi Suleiman, para ele afastar as formigas lá para a rua. Ele sabe... "
Imaginava-a a chegar do jardim quando entrava pela porta envidraçada e me dizia:
-"Os pássaros estavam a chamar por mim, fui falar com eles..."
E os grilos que estavam aprisionados nos canos da banheira da casa de banho -a quem ia de noite dar alface, quando eles vinham cá fora espreitar?
-Não, não é normal..., pensava.
Via-a sair nos fins de semana, com as curtas mini-saias da outra irmã que vivia na cidade. Voltava com os cabelos desfrisados e um corte moderno, contente, com os lábios pintados. Queria ser como as outras raparigas que via na televisão.
-Gostas, saïdati? Da próxima vez vou pintar os cabelos com henné vermelho...

Sentada na cadeira da cozinha, dias depois de toda a história ter começado, dizia-me:
-Se o Miloud soubesse, o meu pai...
-Se os pais soubessem das filhas...
-Se ele soubesse que o nome dele vai estar em cima duma secretária, na Polícia...
-É culpa tua?
Ignorou a pergunta.
-Se o meu Deus, se Allah quer assim...
E, virando-se para mim, brusca:
-Se não gostavas dos lábios pintados, porque não me disseste, saïdati?
Foi entristecendo, pouco a pouco, desleixou-se na maneira de vestir, arrastava os pés nas chinelas, desinteressada.
Onde estavam as personagens que vivera? A heroína das telenovelas românticas? A criadinha de farda verde e touca na cabeça que se ria, a servir à mesa? A “vamp” de saia travada e botas altas que saía ao fim de semana para ir a Salé? A governanta de chaves na cintura? A princesa encantada no jardim dos pássaros?

Uma noite, em que recebia convidados, deixou cair a travessa do jantar na cozinha. Estava completamente bêbeda.
Voltavam as dúvidas. Afinal, ela bebia? E o resto? Era tudo verdade?
Nessa noite tirou os grilos da banheira e veio com eles na palma da mão, cambaleando, lúcida:
-Mato-os?
-Não.
-Vou deitá-los para o jardim.
Com um sorriso frio, atravessou o quarto e, através das grades, deitou-os lá para fora e fechou a janela sem olhar. Como se me quisesse magoar.
Disseram-me outra vez que ela não era boa, que não era séria, que da janela da cozinha continuava a acenar ao homem que quisera violá-la, que lhe falava ao telefone, que ria com ele. E, também, que era prepotente, que fazia chantagem com os outros empregados. Ninguém podia falar comigo sem ela autorizar. Sabia que eu gostava dela e ameaçava-os: se contassem o que se passava lá em casa, bastaria uma palavra dela para eu os despedir!
-“Quando eu quiser!”, dizia.
Qual era a verdade?
Angustiava-me, sem saber o que pensar. Eu gostava muito da Hassnaâ.

Uma manhã, disse-me:
-Já não gostas de mim, saïdati... Não és a mesma. Desconfias...Vou-me embora...
Pareceu-me cansada. Não fiz um gesto para a reter. Acompanhei-a de carro até ao centro da cidade, perto da Medina, onde morava a irmã. Despediu-se de mim com os três beijos a que nos tínhamos habituado.
-Saïdati, nunca te esquecerei...
Sabia também que me lembraria sempre dela. Não me virei para trás, não era capaz de a ver ir-se embora, sozinha.
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(*) "No Magreb multi-étnico dizer Oum kalthoum é nomear a enorme figura da música árabe dos anos 50, ... Milhões e milhões desde o Iraque até Marrocos vieram assistir ao seu funeral e foram-lhe concedidos os mais altos honores de estado."

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A música, as vozes e os sítios: "Kol Nidrei" por Johnny Mathis


O tio Mouzinho, os meus avós e a canção "La Madelon"...









O tio Mouzinho estava casado com a tia Zézinha, irmã da minha avó. Tinha estado na I Guerra, em França, com o batalhão português, e ensinava-nos as canções que os soldados cantavam nas trincheiras, ou quando marchavam em direcção ao inimigo (era assim que eu entendia...). Uma delas ainda recordo bem: era “La Madelon”! Devia ser um pouco atrevida para a época, falava de um cabaret e da bela Madelon que servia o vinho e dava alento aos soldados com a sua alegria e exuberância.

“ Nous en rêvons la nuit
nous y pensions le jour..."
A Madelon serve as bebidas e brinca, ouve as histórias que lhe contam e ri:
"Et chacun lui raconte une histoire
Chacun une histoire à sa façon..."
Ela ouve-os e deixa que a abracem, lhe passem a mão no rosto, lhe acariciem o queixo:

"La Madelon pour nous n’est pas sévère
quand on lui prend la taille ou le menton,
elle rit, c’est tout ce qu’elle sait faire...
Madelon, Madelon, Madelon
!”

Quando um caporal lhe propõe casamento, ela responde, cândidamente:
"Pourquoi prendrais-je un homme
quand j'aime tout un bataillon?"

Sem perceber a língua nem o sentido do que ouvíamos, aprendemos a cantá-la e dávamos o nosso tom infantil à música quase militar.
A outra era uma canção melancólica, de despedida, cheia de romantismo, que ele cantava com a sua voz forte, que parecia sair do seu bigode farfalhudo e quase branco:

“Adeus, amor, que eu vou partir agora,
pr’a defender da pátria o pavilhão,
mas não te esqueças de quem por ti chora,
não dês a outros o teu coração...”

Era uma pessoa simples, afável e generosa e um grande companheiro do meu avô. Contava a tia Zézinha que o avô, aos princípios de casado, costumava sair à noite, indo de paródia com os amigos do tempo de solteiro. Um desses companheiros era o tio Mouzinho, apenas namorado dela que era, nessa altura, muito jovem.
Tudo era motivo para eles festejarem, irem comer fora, ou ao teatro -quando passava alguma revista em tournée. O meu avô foi também actor na companhia de teatro amadora da terra.
- Era uma espécie de teatro de vaudeville, dizia-nos ela. E o vosso avô -"o mano João", como ela lhe chamava- cantava muito bem.
Frequentavam o Cine-Teatro, conheciam as actrizes e os actores vindos da capital. Iam ao "Clube Republicano", onde também aí, o avô se apresentava em peças cómicas e musicais.
A minha avó, muito ciumenta, não gostava, enchia-se de "nervos" e ia com a tia Zézinha, que era mais nova e sobre quem tinha muita autoridade, espreitar o que faziam.
- Vestíamo-nos de “cocas”, com uma mantilha negra e um grande véu que nos cobria todas, para não nos conhecerem... Era o que dantes se usava, até no Carnaval!
Iam instalar-se no fundo de uma frisa, no teatro.
- As noites eram frias -contava a tia- e levávamos uma mantinha para nos aquecer e, às vezes, um franguinho assado, umas laranjas, uns biscoitos para ir petiscando...
Imaginava-as na escuridão: a minha avó de olhos bem abertos a ver se descobria o meu avô e a tia Zézinha, divertida e receosa, a espreitar para todos os lados.
- Eu espreitava, espreitava e, ao primeiro intervalo, arranjava uma desculpa para sair da frisa... Eu era muito amiga do mano João!
Corria os corredores para o ir avisar. Ia até aos bastidores, onde encontrava o meu avô, na conversa, de cigarro na mão, lenço de seda, encantador como sempre. Puxava-o pela manga:
- Tenha cuidado, mano João, que a Branca está ali...
Imitava a sua própria voz, e ria-se a contar-nos isto, batia com as palmas das mãos na mesa, dando grandes gargalhadas. Os olhos negros muito abertos brilhavam de alegria e malandrice.
"A história do teatro acabava bem, vá lá...", contava-nos a tia Zezinha. E acrescentava que, pouco a pouco, o meu avô -que adorava a avó-, perdeu o hábito das saídas até de madrugada, para a não descontentar.
A tia Zezinha era uma grande contadora de histórias e a sua figura boa e cheia de amor pela vida está ligada às recordações mais belas da minha infância.
Os tempos eram diferentes, faziam-se muitas festas em família, piqueniques no campo, burricadas, passeios em charrette pelos arredores de Portalegre, de volta à serra. Pelo Natal e pela Páscoa, reuniam-se todos em casa da tia Mariquinhas, a irmã mais nova da avó, ou, por vezes, em casa do tio Mouzinho, quando casaram.
Os jantares acabavam em longos desafios de canto entre os meus avós e ele. Lembro a minha avó, que tinha uma voz de soprano muito bonita, a cantar ao desafio com o avô.

Ele dizia:

"Ai, se eu pudesse dava-te tudo,
bons sapatos cetim e jóias,
um vestido todo em veludo,
automóveis e tipóias...”

E a avó respondia:

"Ai, meu Manecas, eu bem sabia
que o teu falar não tem bravatas,
Acredita que eu prezo mais
a amizade com que me tratas
..."

Depois, em coro, os dois cantavam o refrão:

"Ai, vem junto a mim,
Dá-me o calor da tua mão,
Vem mimosa flor,
mimosa flor de amor,
ao coração.”

O tio Mouzinho, feliz, aplaudia, dizia “bravo! Bravo!”, abanando a cabeça. O avô sorria e preparava um dos seus enormes cigarros que pareciam charutos.
Contava-me o meu tio, anos mais tarde:
- Aquilo do cigarro era uma espécie de ritual...Tirava duas mortalhas do seu papel preferido, marca “zig-zag”, abria a bolsa onde guardava o tabaco, metia lá dois dedos...
Nós ouvíamos embasbacadas, como sempre que o tio falava porque ele nos contava histórias fantásticas da sua vida.
- Tabaco em rama, hã?! -explicava o meu tio-, não era qualquer tabaco que lhe servia. Depois, punha uma grande quantidade no meio do papel, enrolando-o de tal forma que parecia um charuto...
O avô fumava, bebiam o seu champanhe e a avó queixava-se porque a sua pele muito branca e sensível ficava logo cheia de manchas encarnadas:
- Basta uma pinguinha de champanhe e é isto... E eu que gosto tanto!
Foi nessas reuniões familiares que, muito anos mais tarde, o tio Mouzinho nos ensinou “La Madelon”.
Lembro hoje tudo com saudade, e deixo-vos, no "youtube" acima, a canção e as imagens dos postais que enviavam os "poilus" (como ficaram conhecidos em França estes soldados), da I Guerra Mundial.
Basta fazer "click" para ouvir...
Fotos:
1. O meu avô jovem de 18, 20 anos
2. O meu avô aos 30 talvez, num fotografia tirada no "Clube Republicano"
3. video com a canção "La Madelon"

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

"Strangers on a train", de Patricia Highsmith, filme de Alfred Hitchkock ("Pacto Sinistro", 1951), com Robert Walker, Farley Granger e Ruth Roman



Quem tem medo de Patricia Highsmith? "Strangers on a train" (Pacto Sinistro), de Hitchkock" ou "O amigo americano", de Wim Wenders

"O amigo americano", de Wim Wenders:








































Patricia Highsmith




















"O Talentoso Mr. Ripley", de Antonio Minghella:

















"O jogo de Ripley", de Liliana Cavani:



Patricia Highsmith (Mary Patricia Langman) nasce em 19 de Janeiro de 1921, em Forte Worth, Texas, U.S.A, e morre a 4 de Fevereiro de 1995, em Lugarno, Suíça.


O seu nome aparece associado a uma série de filmes de suspense, ou thrillers psicológicos onde o "mal" está à vontade...

"Strangers on a train" (Pacto Sinistro), de Alfred Hitchcock (1950):





"O que acontece quando dois desconhecidos se encontram num comboio e planeiam dois assassínios - mas um só é que sabe que não é apenas uma brincadeira?"















O tema é de Patricia Highsmith, a realização é de Alfred Hitchkock, o filme chama-se "Pacto Sinistro". A mistura é explosiva... O suspense é de regra.

Wim Wenders escolhe "o amigo americano": Dois homens, Tom, um americano, (no filme,)e Jonathan, um alemão, (Bruno Ganz), conhecem-se num leilão de obras de arte. Jonathan, que tem leucemia e sabe que vai morrer ...
"O sol por testemunha", de Réné CLément:




Outros filmes tirados dos livros de Patricia Highsmith e adaptados ao cinema foram, atmbém, : "O Sol por Testemunha" ("Plein Soleil"), de René Clément (1960), com os actores Marie Laforêt, Alain Delon e Maurice Ronet;

"O talentoso Mr. Ripley" (The talented Mr. Ripley), de Antonio Minghella, com Matt Damon, Gwyneth Paltrow e o talentoso Philip Seymour Hoffman;
"O Jogo de Ripley" (Ripley's Game) com outro grande actor, John Malkovitch (2002), realizado pela italiana Liliana Cavani.
... etc.

Patricia Highsmith é, segundo Graham Greene, (grande escritor que não se pode considerar "suave") o "poeta da apreensão", mais do que do medo. Porque com o medo a gente se acostuma, mas apreensão significa constante tensão, alfinetadas intermitentes de que não se pode escapar....

Novelista e contadora de histórias mais conhecida pelos seus thrillers psicológicos, onde mergulha na natureza da culpa, da inocência, do bem e do mal. Arquitecta de actos criminosos gratuitos impunes, impõe-se alterando a lógica do mundo e dos livros de suspense.
Laureada pelo Barnard College, com estudos em Grego, Latim e Inglês, depois, na Universidade de Colombia(1942), viaja pela Europa em 1949. Em 1963 decide ir viver para França, e, a seguir, em Itália e na Suíça.
Depois da publicação do livro “Strangers on a train” (1950), e da apresentação do filme do mesmo nome, em 1951 (filme de Alfred Hitchcock 1951), foi considerada um mestre da novela do tipo “ ameaça psicológica”.
A novela de Highsmith fala de dois homens –um psicopata e um arquitecto- que se encontram num comboio e “trocam” assassínios.
Diz ela: "Qualquer pessoa pode assassinar. Puras circunstâncias e nada a ver com temperamento! As pessoas podem ir muito longe – basta uma pequena coisa para os empurrar para o abismo. Qualquer pessoa. Até a sua avó! Eu sei...”
Escreve mais de 20 romances sendo os mais conhecidos os que apresentam como herói Tom Ripley.


Outras histórias policiais como “The Talented Mister Ripley" (1955) são adaptadas ao cinema, "Ripley's Game" (1974), "The Boy Who Followed Ripley" (1980), e "Ripley Under Water" -Águas Profundas- (1991).
É também autora de uma novela não-policial: The Price of Salt publicada sob o pseudónimo de Claire Morgan, história até certo ponto autobiográfica.

"O rapaz que seguiu Ripley"









Li muitos livros de Patricia Highsmith. Para definir a sua literatura, escolheria uma série de adjectivos (quem diz que o adjectivo não é necessário?) Perversa? Amoral? Implacável? Chocante?
Nos seus romances perpassa o mal como um arrepio que nos sobe pela espinha e nos deixa gelados.
Ripley –o herói da maior parte dos seus romances, aliás, anti-herói, –ou, antes, não-herói, ou herói satânico, o herói ao negativo, como película negra de uma fotografia não imprimida – é uma personagem que nos prende e surpreende desde o início. Que nos atrai e que nos causa repulsa.

Onde está o bem e o mal?
Quem é Ripley?
É o perverso, o amoral comerciante de arte que inventa um “golpe de génio”: um pintor que pinta, que tem sucesso e morre. (Como morre?) Os seus quadros são procurados, mas quase não existem. Os preços sobem. E, de repente, gota a gota, novos quadros aparecem. Alguém ganha com isso: Tom Ripley. E a história continua...
è, também, o tal comerciante de quadros, pessoa culta, elegante, um dândi moderno, um hedonista, com casas magníficas cheias de pinturas boas e de objectos de arte valiosos, que vive –aparentemente- uma vida normal, que ora convive, ora se ausenta. Que se isola e se esconde.


Tem, porém, uma vida “underground", ("Ripley Under Ground")desconhecida. Ou uma cave, um sítio underground, onde guarda coisas secretas. Aquilo que não deve?
Tudo hipóteses cuja solução está nos seus livros... Basta lê-los: e vale a pena!
Horríveis, terríficos, impiedosos, implacáveis, sarcásticos, cheios de humor, inesperados, bem escritos, inesquecíveis!
E humanos: sim, ela também sabe ser humana... O reverso da medalha: a história do “amigo americano” (filme de...). História de um homem que assina um “contrato” que lhe vai dar a possibilidade -a ele, condenado pela doença- de deixar uma fortuna à jovem mulher e ao filho. História de amor, de amizade, de sacrifício.
Terrível...
Outros contos cuja leitura vos aconselho: “O observador de caracóis e outros contos”, publicado pela Teorema há muitos anos.
Humor negro, finais que surpreendem, terríveis.
Enfim, ela é mesmo terrível!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

"Os Olhos de Jade": capítulo 7


"A imagem de Abigail, com os cabelos soltos... Coisas terríveis dizia Abigail na carta..."



CAPÍTULO 7


Batiam as nove da noite quando Alice chegou a Brighton. Stephen já estava em casa, viu o Mercedes arrumado no canto direito da garagem, como de costume, deixando o resto do espaço para ela.
“Geometricamente arrumado! É mesmo um maníaco! Só ele e o carro!”, pensou. “As horas que perde a olhar para dentro do capot!, a estudar os pormenores, como ele diz... Que parvoeira..."
Vira luz no escritório. Estremeceu sem saber porquê. Arrumou o Aston Martin de qualquer maneira.
“Será
medo?...” Stephen intimidara-a desde o primeiro momento e não conseguira libertar-se daquela sensação desagradável quando pensava que ele ia ficar irritado.
Ouvia o murmúrio do mar. Sempre gostara de ali viver, mas agora o ruído surdo que adivinhava ao longe assustava-a. Parecia-lhe sentir o piar angustiado das gaivotas.
“Por quê esta reacção depois de tantos anos? Como se me pudesse vir dele algum mal... Que estupidez a minha!”
Entrou em casa, subiu as escadas a correr enquanto estranhava:
“É tarde, o que estará ali a fazer a esta hora? Já devia ter jantado...”
Foi direita ao escritório dele, abriu a porta bruscamente entrou sem dizer nada, querendo mostrar-se natural. Tirou o casaco de peles, deitou-o para cima de uma cadeira, sacudiu a saia e foi sentar-se no sofá de couro preto, em frente da mesa dele, desafiando-o com o olhar.
Em cima da secretária estava espalhado um monte de folhas de papel. Pareceram-lhe cartas, amarelecidas pelo tempo.
Stephen levantou os olhos, tirou os óculos e pousou-os ao lado, afastando os papéis com a mão.
-Ah! Chegaste finalmente... Onde estiveste?
Perguntava, fingindo-se, como sempre, desinteressado.
-Estive em casa da Joan a tomar chá. Está muito em baixo, como calculas.Venho chocada! Pensa...
-É natural que esteja assim, não devia estar à espera que a mãe morresse -interrompeu ele-, A Abigail era nova e não estava doente. Bem, afinal até estava. O paludismo é uma doença que mata...
-Pois, o problema é que a Joan não acredita nessa história do paludismo. Pensa que a mãe foi assassinada... E eu ouvi os argumentos dela, com muita atenção. Impressionou-me tanto a conversa que fiquei cheia de dúvidas...
-Dúvidas? Que dúvidas?
-Quase concordei com ela. Foi o paludismo que a matou ...ou terá sido envenenada? Prometi ajudá-la a descobrir a verdade!
E Alice olhou para Stephen, a ver o efeito das suas palavras. Stephen pegou na filofax preta e pô-la em cima dos papéis, como se quisesse escondê-los. Parecia contrariado.
-Bem, acabei, por hoje. A verdade, dizes tu...Qual? De que verdade estás a falar?
-Da verdade única: o que aconteceu, realmente... Tu o que pensas?
-O que queres que eu pense? Assassinada? Envenenada!... Acho que está doida! Paranóias! Não me admira, a Joan foi sempre um pouco louca...

Parou, desviou o olhar e continuou:
-Ideias nunca lhe faltaram, levou a vida a fugir dum sítio para outro, de um curso para outro. Não parava em lado nenhum. Não é muito certa...
-Isso não prova que não tenha razão. E não concordo contigo! Louca não é, inconstante, sim, talvez.

Depois, teimosamente, insistiu:
-O que ela diz tem sentido! A Abigail sofria de crises há anos, não eram perigosas, apenas a incomodavam. Sem mais nem menos, morre de paludismo! É absurdo, tens de concordar.
-Concordar, por quê? Queres dizer que é menos absurdo ser envenenada? É mais normal, mais comum, não?... Acontece todos os dias. Andam para aí assassinos a toda a hora a envenenar as pessoas!
-Ela lá tem as suas razões! Desconfia...
Stephen interrompeu-a, seco:
-Também não pareces estar a regular bem da cabeça! Já participas nas loucuras dela? Tens é que te ocupar com coisas sérias, coisas concretas! Só filosofias e literatura, isso não dá para nada... Se fosse nessas filosofias, estava bem arranjado! Eu tenho que trabalhar...
Assentou as palmas das mãos com força em cima da secretária e levantou-se, endireitando bem as costas:
-Pensar faz-te mal, já to disse várias vezes...
-Paranóias?! Já que levas a conversa para esse lado, então digo-te que não fui só eu a concordar. A Emily e a Helen também concordaram!
Stephen riu, sarcático.
-Outras doidas! Uma divorciada e uma solteirona... Ora, deixa-te disso! Vamos para a sala, eu já comi.
-Uma divorciada e uma solteirona! Como podes ser tão frio? Só te preocupa a tua pessoa! A Emily é uma óptima médica e o facto de não ter casado não diminui a inteligência de ninguém, que eu saiba... Antes pelo contrário...
Acrescentara a última frase num tom mais baixo. E juntou:
-E a Helen é a pessoa mais lógica, mais... Eu sei lá! E tem os pés bem na terra, não é nenhuma parva!
Ele olhava para ela, com ironia crescente, sentindo-a esbracejar, enervar-se.
-Está na hora do noticiário...
-És horrível, Stephen! Não quero saber do “teu” noticiário! Vou ver o que há para comer na cozinha. E vou-me deitar! Dás-me cabo dos nervos! És um cínico!
Levantou-se, indignada, arrastando o casaco, e saíu furiosa da sala.
-Cínico, eu? Não. Realista, minha querida, apenas realista!
Stephen olhou em volta, apagou as luzes do escritório e dirigiu-se para o salão.
Nessa noite, Alice não conseguiu dormir. A conversa com Joan, a recordação de Abigail linda, com os cabelos soltos, a rir-se não a largavam. A secura e a incompreensão do marido, mas, sobretudo, a indiferença que as palavras dele revelavam, faziam-lhe mal.
Indiferença? Cinismo? "Ou será outra coisa?”
Saberia coisas que ela ignorava?, continuava a pensar.
“Coisas terríveis”, dizia Abigail na carta...
“O que seriam aqueles papéis que tapou com tanto cuidado, quando cheguei?”
Pensava e revolvia-se na cama, sem sono.

Quando Stephen se veio deitar, mais tarde, fingiu que estava a dormir. Virada para a parede na sua cama, com os olhos semi-cerrados, ignorou-o até ele adormecer. Continuava a pensar na tarde passada na antiga da Abigail, desaparecida. Revia o ar perdido de Joan, a sua tristeza. Lembrava-se de Abigail, bela, cheia de vida, com os cabelos ruivos e revoltos a emoldurarem-lhe o rosto muito branco, as sardas no pescoço. Dormiu num pesadelo contínuo e acordou, sobressaltada, a meio da noite.
“Que papéis é que ele tentava esconder?...”
Não lhe saía esta ideia da cabeça. Sentou-se na cama, cheia de suores. Levantou-se devagarinho, vestiu o robe de veludo azul-escuro e calçou as pantufas de pele. Estava uma noite muito fria.

Tirou o molho de chaves do bolso das calças de Stephen, sempre meticulosamente dobradas sobre a cadeira, e desceu as escadas.
Tinha que abrir o cofre. Sabia que ele guardava ali os documentos importantes. Mas a busca não levou a nada. O cofre continha alguns maços de notas e uma papelada que não se referia a nada que ela pudesse relacionar com Abigail, ou com clientes africanos.
Em cima da mesa viu um corta-papéis de marfim com um formato curvo e um cabo verde, de pedra.
“Será de jade? Oh! Meu Deus! Estou a ficar obcecada!”
Pegou na faca e observou-a. O cabo espalmado era de malaquite esculpida, formando desenhos geométricos. Pousou-a no mesmo sítio. Stephen coleccionava facas estranhas. Olhou de lado para a vitrina onde estavam todas arrumadas. Arrepiou-se.
-“Odeio objectos cortantes!”, quase gritou.
Voltou para o quarto a pensar que nunca tinha visto aquela faca.
"Donde viria? Por que a tinha ele em cima da mesa?"
Extenuada, deitou-se e adormeceu imediatamente.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Mais poesia: Manuel Bandeira, o grande poeta brasileiro que os portugueses amam...

www.youtube.com/watch?v=xM6hm8h_c0s (Poesias ditas por Manuel Bandeira)
(Poema Vou-me embora pra Pasárgada, lido por Manuel Bandeira)

Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu no Recife, a 19 de Abril de 1886 e morreu no Rio de Janeiro, a 13 de Outubro de 1968.

Foi poeta, crítico literário e de arte, professor de literatura e tradutor.
Manuel Bandeira fez parte da "geração de 22" da literatura moderna brasileira, sendo o seu poema "Os Sapos" o manifesto da Semana de Arte Moderna de 1922. Juntamente com escritores como Gilberto Freire, João Cabral de Melo Neto, Paulo Freire, e José Condé representa a produção literária do estado de Pernambuco.

Em 1904 termina o curso de Humanidades e foi para São Paulo, onde iniciou o curso de arquitectura na Escola Politécnica de São Paulo, que interrompe depois por causa da tuberculose, doença fatal. Esteve em Campanha -Campos do Jordão- e noutras lugares à procura de um clima suave para repousar.

A dada altura, com a ajuda do pai que reuniu todas as economias da família, foi para Suíça, onde esteve no Sanatório de Clavadel. Ali conheceu o jovem Paul Eugene Glidel, mais tarde famoso como poeta em França sob o nome de Paul Eluard, e Gala, a pintora, mulher de Paul Eluard e que, mais tarde, casa com Salvador Dali.
Manuel Bandeira morreu no dia 13 de outubro de 1968 com uma hemorragia gástrica aos 82 anos de idade, e foi sepultado no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.

http://www.youtube.com/watch?v=vXh3K4AEevY (Serenata de Shubert em violão)





















Anteontem, minha gente,

Fui juiz numa função
De violeiros do Nordeste.
Cantando em competição,
Vi cantar Dimas Batista
E Otacílio, seu irmão.
Ouvi um tal de Ferreira,
Ouvi um tal de João.
Um, a quem faltava o braço,
Tocava cuma só mão;
Mas, como ele mesmo disse
Cantando com perfeição,
Para cantar afinado,
Para cantar com paixão,
A força não está no braço:
Ela está no coração.
Ou puxando uma sextilha
Ou uma oitava em quadrão,
Quer a rima fosse em inha,
Quer a rima fosse em ão,
Caíam rimas do céu,
Saltavam rimas do chão!
Tudo muito bem medido
No galope do sertão.
A Eneida estava boba;
O Cavalcanti, bobão,
O Lúcio, o Renato Almeida;
Enfim, toda a Comissão.
Saí dali convencido
Que não sou poeta não;
Que poeta é quem inventa
Em boa improvisação,
Como faz Dimas Batista
E Otacílio, seu irmão;
Como faz qualquer violeiro
Bom cantador do sertão,
A todos os quais, humilde,
Mando a minha suadação.

Manuel Bandeira
(1886-1968)
CANÇÃO DO VENTO E DA MINHA VIDA


O vento varria as folhas,

O vento varria os frutos,

O vento varria as flores...

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes,

O vento varria as músicas,

O vento varria os aromas...

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos

E varria as amizades...

O vento varria as mulheres...

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De afetos e de mulheres

O vento varria os meses

E varria os teus sorrisos...

O vento varria tudo!

E a minha vida ficava

Cada vez mais cheia

De tudo.



O AMOR, A POESIA, AS VIAGENS
Atirei um céu aberto
Na janela do meu bem:
Caí na Lapa - um deserto... -
Pará, capital Belém!










A ESTRELA


Vi uma estrela tão alta,

Vi uma estrela tão fria!

Vi uma estrela luzindo

Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!

Era uma estrela tão fria!

Era uma estrela sozinha

Luzindo no fim do dia.

Por que da sua distância

Para a minha companhia

Não baixava aquela estrela?

Por que tão alto luzia?

E ouvi-a na sombra funda

Responder que assim fazia

Para dar uma esperança

Mais triste ao fim do meu dia.


CANTIGA


Nas ondas da praia

Nas ondas do mar

Quero ser feliz

Quero me afogar.

Nas ondas da praia

Quem vem me beijar?

Quero a estrela-d'alva

Rainha do mar.

Quero ser feliz

Nas ondas do mar

Quero esquecer tudo

Quero descansar.