segunda-feira, 15 de março de 2010

Histórias das Ilhas na Bruma: S. Tomé e a cobra-preta

A tarde estava fresca, era a estação da Gravana e o jardim mostrava os verdes e as cores vivas das flores tropicais: rosas de porcelana, bicos de papagaio, bordões de S. José... Não me cansava de as olhar. A Dáy subia e descia da goiabeira, fazia corridas com o Zac, o meu raposinho cor der mel.


Perguntei ao sr. Semedo:
- Onde é que há cobra preta, Sr. Semedo? Há cá na ilha mesmo, ou é invenção?

Queria saber bem o que eram as histórias da cobra preta, a “cobra-minuto”, que de vez em quando me vinham contar, mostrando uma pele de cobra seca, enrolada e de cor amarela, que vinha –contavam- duma roça do interior.

O Sr. Semedo sabia tudo e o que ele mais gostava era de estar ali, no jardim, parado a olhar em volta as plantas que ajudara a crescer, a ver as flores, a fruta-pão no alto da fruteira, as mangueiras, os coqueiros que plantámos com ele. E a contar-me coisas.
Olhou-me, com um ar circunspecto, tossiu uma tossezinha seca e, encostando-se ao pau da vassoura, começou:
- Não é invenção, não, Doutora. Há mesmo cobra preta cá na ilha!
- Mas perto da cidade não, pois não?
- Bem, na cidade capital não. Se a doutora for para o Sul nos seus passeios até pode encontrar...
Hesitou e disse:
- Ou para o Norte, claro, para a Trindade, para o Monte Café e mais para cima ainda. No ôbó. Eu até já disse à dôtôra que nunca deve parar nos sítios onde haja vegetação cerrada, o matagal. Elas gostam disso... Toda a mata! Onde há cacaueiro, árvore de sombrear, tudo!

Roça do Monte Café
- Elas gostam de quê, Sr. Semedo?, continuei.
Gostava de o ouvir falar.
Encolheu os ombros magros e acrescentou, quase sorrindo.
- Da secura, gostam de estar cobertas de folhas, gostam de se arrastar pelo chão, lá por baixo, na erva...
Pensou um pouco e continuou:
- Na Gravana. Agora... Com as chuvas, elas escondem-se. Devem ter buracos ou isso...
- Pois, é verdade, dizem que é na secura da Gravana...
- Quando a dôtôra for de passeio no jeep nunca saia fora da estrada! Se ouvir um barulho de rastejar, assim “schschsch” nunca se aproxime!
Pensou, olhou para os meus pés descalços apoiados na relva, e disse:
- Sobretudo sem botas! A doutora não tem botas...
E era verdade, não tinha.
Naquele clima sobretudo quente e húmido, quem se lembrava em andar com botas?”, pensei.
O Sr. Semedo sabia bem que eu usava sandálias, ou sapatilhas de pano.
Pareceu preocupado logo. Levava muito a peito a minha segurança.

A Daý, que se aproximara a ouvir, deu uma gargalhada:

- Dôtôrra não precisa de botas! Não há cobra preta aqui!
O Sr. Semedo olhou para ela, irritado, suspirou e não me pareceu muito tranquilo.
- Pois é, mas eu é que sei o que é perigoso...
- Não vou para esses sítios, esteja descansado..., disse para o acalmar.
- Sim, sim. A doutora diz que não, mas vai lá para aquele Miradouro...
Começou a passar o cigarro de uma orelha para a outra, como era seu costume. Estava nervoso, não tinha coragem de o fumar na minha frente.
- Pode fumar o cigarrinho, Sr. Semedo, não faz mal...
Aliviado, tirou-o da orelha, riscou um fósforo no tronco da buganvília e agradeceu.
- Obrigada, doutora. É o cigarrinho da manhã, só o vou fumar agora...
E ria-se. Olhou em volta o seu jardim.

Depois insistiu, desconfiado:
- Mas a doutora vai para o Miradouro, eu sei, e, nesta altura, é perigoso.
- Dôtôrra sabe tudo, dizia a Day. Não precisa ensinar ela...
- Criança fala muito e não sabe nada!, resmungou.
Ignorei o que a Dáy dissera. Ela estava sempre a contrariar toda a gente e só me tinha respeito a mim.

Virei-me para o Sr. Semedo e disse-lhe:
- Tem toda a razão, Sr. Semedo, eu não devia ir para aqueles lados.
E imaginava barulhos lá longe, no miradouro, no matagal que descia por ali abaixo quase até ao mar.
- Está tudo feito num matagal...

Olhei para ele:

-Pode ser perigoso. Não é verdade?
- Pode ser perigoso, sim, doutora, pode mesmo... Eu até vou contar à doutora uma história verdadeira... Vai meter medo...
Sorriu, quase contente com a ideia de me meter medo. Talvez pensasse que podia assim evitar que me fosse meter numa situação dessas.
- Assim doutora já não vai para lá!, disse com os olhos brilhantes.
E começou a história que não esqueci:
- Bem, aqui há uns tempos...
Pensou, e disse:
- Foi na última estação da Gravana, pois foi, um casal de turistas resolveu dar um passeio e ir comer para o campo....
Olhou para mim, levantou um dos ombros, e explicou melhor:
-Piquiniqui, ou essas coisas, a doutora sabe o que é. Levam “sandis”, latinhas de cerveja dentro duma caixa com gelo, e frutas...
- Sim, Sr. Semedo, sei...
-Pois então, eles foram num jeep, por acaso alugado ao Sr. Rodrigues, foi ele que me contou e entraram por um desvio, na picada de mato seco, pararam e puseram-se a comer sentados nuns banquinhos...
fruto do cacaueiro, maduro


- Ah! E o que aconteceu?, perguntou a Dáy, de repente interessada.
- Bem, ao princípio, não houve nada. De repente, é que ouviram um barulho e viraram-se para trás a olhar! Sabe o que era, Doutora?
-Cobra preta?
- Sim. Uma família de cobra preta, com filhos e tudo! Saíram do mato, a rastejar de cabeça levantada. Para picar, claro...
- E elas não tinham medo?...
- Quando têm fome, as cobras não têm medo da gente. Cheiraram a comida...
- E depois?, perguntei, incomodada com a imagem da cobra e das cobras pequeninas, como enguia, a rastejar correndo em direcção dos desgraçados.
- Ficou com medo, não doutora? Ainda bem! É mesmo assim. Cobra preta faz muito mal e a picada dela não tem cura. É “cobra-minuto” como lhe chamam, a doutora já ouviu chamar assim?
- Sim, já ouvi... Se não se dá um antídoto, a pessoa morre. Não é num minuto, é claro...
- Pouco mais, doutora! Se não houver a injecção, não há salvação... E dizem que tem de vir esse remédio de Paris... Ou do Gabão.
- Sim, disseram-me isso.
- Qual injecção?, perguntou a Dáy.
Estava impressionada também. Parecia ter perdido as cores do rosto, e o sorriso irónico desaparecera.
-A injecção é o antídoto, o contra-ataque para anular o veneno...
- E se não houver, dôtôrra? A gente morre?, perguntou a Dáy.
O senhor Semedo disse, com um ar grave:
-Quando esse remédio, que diz doutora, não chega, morre-se...

- E então, o que faz a gente?, continuou ela.
-Então, a gente tem que morder na ferida, chupar o sangue e cuspir logo, chupar e cuspir. Fazer isto muitas vezes, com cuidado... Se tiver ferida na boca...morre também!
Lembrava-me de ouvir falar dum garrote que se devia pôr, acima da mordidela da cobra, para o sangue não ser infectado, e, de facto, tinha de se aspirar o veneno, e cuspir.
Para distrair a Dáy, perguntei:
-E depois, como acabou?
-Bem, eles fugiram a sete pés!
-E os bancos? E a comida?, continuou a Dáy, prática.
-Largaram comida e tudo no chão! Até os banquinhos...
-Os banquinhos também?
A Dáy sorria, outra vez divertida, a imaginar a corrida, os bancos abandonados no chão, a comida a ser devorada pelas cobras esfomeadas.
-Parece que os turistas entraram pelas traseiras do jeep, um a puxar pelo outro, treparam de gatas e saltaram por cima dos assentos da frente, até se agarrarem ao volante!
-Ah! Meu Deus! Ha!ha!ha! De gatas...
E a Dáy agora quase chorava de tanto rir...
- De gatas!
Sentada no chão, batia com as mãos nos joelhos.
O Sr. Semedo olhava-a com ar de censura.
-Que história!, disse eu.
-Pois foi, doutora. Acho que quando arrancaram com o jeep só pararam na cidade, no mecênico, e puseram-se a espreitar debaixo do jeep...
- Por quê a espreitar?, interrompeu a Dáy.
- Tinham medo que alguma das cobras viesse pendurada. Ou que estivesse escondida na caixa das mudanças...
Agora o Sr. Semedo também sorria.
-Contou o Sr. Rodrigues que estavam verdes de medo!
A Dáy deixara de rir. Chegou-se para o pé de mim.
-A dôtôrra já não vai mais àquele miradouro, pois não?
Sorri e abanei a cabeça.
-Não, não vou...
-Pois é. Eu já avisei doutora...Doutora não queria ouvir...
-Ouvi, ouvi. Agora ouvi, Sr. Semedo.

-Bem. Vou então acabar de varrer o jardim. Na Gravana, a doutora sabe, cai muita folha...
O Sr. Semedo apagou o cigarro, pegou na vassoura e foi para o lado da cozinha onde a Milly conversava alto com a Nina.
Eu e a Dáy, pensativas, ficámos a ver descer a noite no quintal.

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