domingo, 24 de julho de 2011

Barbárie, intolerância e violência cega: NÃO!

Li esta descrição, que achei terrível, em La Stampa de ontem. O autor do artigo era Andrea Malaguti :

"Pouco antes do nascer do sol, os helicópteros voam baixo sobre o ligeiro espelho de água que divide a aldeia de Sundvollen do paraíso perdido de Utoya.
Os motores dos Sea King, que e transportam médicos e enfermeiros, martelam o ar com o seu ritmo inquietante.

Em pequenas barcas brancas os pescadores e os voluntários chegados das aldeias chamados pelo tam tam da Internet iluminam o perfil escuro do mar, repercorrendo para trás e para diante os oitocentos metros que dividem as duas costas.

Recuperam os corpos que boiam à superfície. Máscaras desfiguradas, a pele branca, os ombros e as costas furados de balas. Há farrapos de roupas por toda a parte. Sapatos. Camisas. Cintos. Jeans.

Pais esmagados pela angústia esperam notícias no Hotel Sundvollen Hotel, ponto de encontro dos que escaparam.

Gritos contínuos. Uma mulher vomita apoiada num banco. Está frio, e o vento gélido.

Está frio, e o vento é gélido.
A Noruega descobre o que significa confrontar-se com o Apocalipse.”
Confronta-se com a barbárie também. A barbárie que nos perseguiu séculos, que é ignorância, espírito reduzido que só pela inteligência e cultura conseguimos vencer.
O primitivismo da ignorância, da intolerância que percorreram a nossa história.

Nada disto é inesperado: aproximava-se a passos largos, pela Europa fora. O fundamentalismo não é só islamista, pode ser cristão como neste caso.Da nossa Inquisição que durou quase 3 séculos. Do egoísmo e da recusa da diversidade e da liberdade de pensamento do outro.

A alterofobia levada ao paroxismo do ódio, à insuportabilidade do outro e da diferença - seja ela étnica, de religião ou política- pode conduzir a casos extremos psicopáticos, como neste caso. Mas esse sentimento de intolerância existe latente, em pessoas ainda normais...

Ao ponto de se virar contra os próprios semelhantes – iguais idênticos até na cor da pele, no loiro dos cabelos, no ar de vickings e na religião... mas não nas ideias políticas. ´
E o ódio explode só porque a política de um governo é adversa às suas “ideologias” (que ideologia???) de extrema direita e tem uma política de imigração tolerante. Insuportável de aceitar!

Culpa dos ideólogos e leaders de certos partidos extremistas que “giram” pela Europa, apontando como os bodes expiatórios da crise – e de todas as desgraças - os forasteiros.
Que não discutem as ideias e se limitam a apontar "culpados". Os culpados são sempre os estrangeiros. Os “métèques” de todos os tempos - de que falava Georges Moustaki.

Pela Europa toda. Basta ver o que aconteceu recentemente aos ciganos na Hungria que o governo (de extrema direita ) quer guetizar, fechar detrás de um muro alto.

Leio António Sérgio (Volume II dos “Ensaios”, “O Reino Cadaveroso ou o Problema da Cultura em Portugal”, Clássicos Sá da Costa).

Conta ele que o tempo em que nós portugueses fomos grandes foi o das Navegações: que criaram em nós a atitude crítica, a atitude de independência em relação à Autoridade dos textos”.
De curiosidade e abertura ao novo, ao diferente.

De facto, a descoberta do Outro enriqueceu-nos nessas viagens, fizéssemos o que fizéssemos de bem ou de mal.

Cita Garcia da Orta e os seus Colóquios dos Simples e Drogas.

Foi essa abertura a outra realidade tão diversa da circunstante europeia que nos levou às grandes descobertas.

A descoberta do desconhecido: o outro, os outros, a natureza-outra, a realidade-outra, o homem-outro!

A “nova terra, o novo céu, o novo homem”.

É Garcia da Orta quem diz “não importa a sabença, mas o contributo da busca para a libertação do espírito”, considerando-se ele mesmo um “inquiridor de verdades”!


A “nova terra, o novo céu, o novo homem”. As plantas desconhecidas, as "drogas" novas, novas medicinas... Contra a Autoridade aristotélica, ou da Igreja, dos peripatéticos medievais. Foi nessa crítica que mais próximos estivemos do espírito renascentista.

E foca a importância do desejo de Garcia da Orta “contar o que vira no Malabar” – coisas que, contrariando embora a Autoridade, ele as sabia “muito bem sabidas, como testemunha de vista”.

O tal “saber de experiência feito” de que fala Camões (que o conheceu na Índia) quando diz : “vi claramente visto”...

Foi essa abertura a outras realidades tão diversas da circunstante europeia que nos levou às grandes descobertas.

A aventura do desconhecido: o outro, os tantos outros, a natureza-outra, a realidade-outra, o homem-outro!





Também citado por António Sérgio, aparece o cosmógrafo e navegante Duarte Pacheco e o seu Esmeraldo de Situ Orbis.
Escreveu no Esmeraldo: “a natureza usa de grande variedade em sua ordem, no gerar e criar coisas”.

Essa natureza é variegada e riquíssima e é através da observação, da experiência e do conhecimento que se abrem os espíritos.

Por isso é "melhor ter muito visto", diz.


Quem muito vê, mais encontra (também vi muita gente viajar e voltar exactamente tal qual como partiu: não "viu" nada...).


E se tiver o tal espírito crítico e aberto - e não se refugiar no “nacionalismo” doentio, no "já conhecido", "no seguro, porque igual a mim"- muito encontrará na vida que o possa enriquecer.

O conhecimento é fecundo e dá muito...


Faz com que encontremos o diferente, a parte desconhecida de nós mesmos que nos tornará mais completos quando a descobrirmos. E com ela dialogarmos, em colóquio...

Com os outros...

Árabes, judeus, cristãos, islamistas, animistas, de cor branca ou negra, etnias várias, asiáticos, caucasianos ou mongóis – o que importa?

É essa variedade – a tal variegada natureza criadora - que enriquece a vida e a humanidade!


Pobres dos espíritos doentes, extremistas e restritivos da liberdade de pensamento e de opinião do outro, dos fundamentalistas de todas as religiões, seguidores da Autoridade Única ou de qualquer forma de Superioridade rácica ou religiosa ou política...

Na Noruega foi esse espírito doente, medieval, escolástico e peripatético, intolerante e fechado sobre si, sim, foi ele que fez a carnificina!

Espírito reduzido onde o "plenilúnio da cultura" (de que falava Sérgio) não chegou.

Da cultura verdadeira e aberta, construtiva, que amplifica e abrange em vez de reduzir e fechar...


Georges Moustaki, Le Métèque




Notas:

Garcia da Orta nasceu em Castelo de Vide, cerca de 1500 e morreu em Goa, cerca de 1568.

Médico judeu português viveu na Índia no século XVI. Autor pioneiro sobre Botânica, Farmacologia, Medicina Tropical e Antropologia, escreveu “Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”.


2. O "Esmeraldo de Situ Orbis" é um manuscrito da autoria do cosmógrafo português Duarte Pacheco Pereira. Dedicada ao rei D. Manuel I de Portugal (1495-1521), a obra foi montada em cinco partes, com um total de duzentas páginas, em 1506. Conforme descrito nas próprias palavras do autor, trata-se de uma obra de "cosmografia e marinharia”.

"A experiência é a madre de todas as cousas, per ela soubemos redicalmente a verdade..."
Esmeraldo de Situ Orbis, p. 196

http://carreiradaindia.wordpress.com/category/o-esmeraldo-de-situ-orbis-duarte-pacheco-pereira/




6 comentários:

  1. MJ,
    Gostei muito deste post. Um excelente NÂO à ignorância, à violência, ao xenofobismo, ao fundamentalismo venha ele donde vier.
    Não sei o que dizer está tudo dito por si de uma forma muito elegante!
    Beijinhos e grata por este momento. :)

    Adoro Moustaki.

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  2. Mais um fracasso insuportável da inteligência!

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  3. Adorei este seu post.
    Tanto se aprende aqui.

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  4. Maria João,

    Queria agradecer-lhe este texto e associar-me ao seu grito de indignação. Como é possível não aceitar a riqueza do hibridismo e da mudança?!...
    Um grande abraço,
    Lurdes

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  5. Tanto a sonhar e tanto coisa desnecessária acontecendo. Bom ler aqui, não me angustia tanto.

    bj meu

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  6. E o único modo de reagir qual é? Eu acho que é exemplar o que disse o primeiro ministro: "continuar a ser como somos,prezar a democracia e dar as mesmas liberdades".
    Só assim "eles" não terão a vitória que desejariam ter. Seja lá "eles" quem forem e venha donde vem esse horrendo fundamentalismo ou intolerância.
    Com um pouco mais de cuidado, claro!

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