quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O Cristo, palavras de um certo morto...

Andrea Mantegna, Cristo morto



ANTERO DE QUENTAL

PALAVRAS D’UM CERTO MORTO


Ha mil annos, e mais, que aqui estou morto,


Posto sobre um rochedo, á chuva e ao vento:


Não ha como eu espectro macilento,


Nem mais disforme que eu nenhum aborto...



Só o espirito vive: vela absorto


N'um fixo, inexoravel pensamento:


«Morto, enterrado em vida!» o meu tormento


É isto só... do resto não me importo...



Que vivi sei-o eu bem... mas foi um dia,


Um dia só — no outro, a Idolatria


Deu-me um altar e um culto... ai! adoraram-me.



Como se eu fosse alguem! como se a Vida


Podesse ser alguem! — logo em seguida


Disseram que era um Deus... e amortalharam-me!




In “Os Sonetos Completos”, 1ª edição, Porto, Livraria Portuense, 1890, pg. 69 (a grafia respeita a da referida edição)

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