sexta-feira, 5 de abril de 2013

COISAS DO TEMPO QUE PASSA...





O tempo vai, o tempo vem, O tempo tira-nos coisas, leva pessoas que amámos, deixa recordações. 

O tempo traz também de vez em quando alguma coisa.


Hoje recebi uma prenda que me enterneceu: um quadro pintado a canetas de feltro, por uma pintora que nunca aprendeu a pintar e sempre fez uns quadros naïfs, cheios de selvas e de feras...



O nome dela é Dores Varela e o tempo também passou  pelas duas, como é inevitável...
Conheci-a no meu Liceu (bem, escola secundária) de São João.

Veio de África, de Moçambique, onde trabalhara numa Biblioteca Pública. Eu estava de passagem, vinha de Itália e tínhamos muito para conversar. A vida não lhe sorrira e desse bom emprego que tivera só restavam recordações. 
Aqui, arranjara aquele lugar de contínua, no liceu.

Aí a conheci. Aí falámos. Aí ficámos amigas. Porque somos ainda amigas.
Eu ensinava nos cursos nocturnos, ela estava na pequena Biblioteca que, de noite, servia de tudo: era secretaria, papelaria, biblioteca e ponto de encontro.

Então, durante os pequenos intervalos das aulas, fartei-me de falar com a D. Dores e com a D. Isabel. Ia buscar livros, ou comprar canetas (velha paixão que nunca perderei), fazer fotocópias ou imprimir testes. Às vezes levava para lá os meus jornais franceses, porque havia sempre quem os quisesse ler. 



A noite era tranquila e o tempo corria devagar, sem stress para ninguém.
Foi nessas conversas que soube que ela gostava de pintar a sua África saudosa.


gazelas ao pôr do sol, na Gorongosa...

- Com canetas de feltro, só! Mais nada!, insistia ela.



Trazía-os de casa, para me mostrar. Eram cenas de aventuras, de caça com azagaias, onde podiam aparecer leões ou leopardos, tribos guerreiras de lança em punho, pássaros estranhos esverdeados. Pássaros enormes na desproporção, assustadores, mas atentos, defendendo os seus ninhos...


guerreiras empunhando azagaias  


E, sempre, uma floresta virgem, selvagem, árvores frondosas e gigantescas, palmeiras, arbustos, com cores agressivas, cheias de perigos escondidos detrás de cada uma delas!

- Sou eu que imagino tudo... Os leões só os vi no Parque da Gorongosa...


um leão no Parque da Gorongosa (moçambique)

Num dado ano, fui para outra escola em Sintra e passámos a ver-nos menos. Ela reformara-se entretanto e, por vezes, encontrávamo-nos no super-mercado da Praceta, ou na estação, sempre com um chapeuzinho e um saco na mão.


vista do Parque da Gorongosa

- Vou apanhar sol, ali nas rochas da praia.

De facto, a praia da Azarujinha fica perto. Via-a queimada do sol, livre, mas sentia-a amargurada.


uma praia, quadro do pintor João vaz

- E os seus quadros?, perguntava eu.
- Ah! É verdade, a professora gostava deles. Um dia deixo-lhe um no Liceu, à Isabel.

Prometi que passava. E o tempo continuou a correr e não passei.
Ultimamente não nos temos visto. 

Hoje, por outra razão, fui ao meu antigo Liceu.
Lá estava a D. Isabel na papelaria com o seu sorriso...e o quadro para mim!


o quadro, na totalidade

pormenores do quadro

Pássaros e ninhos

Falámos um bocadinho, comprei três canetas, parei para deixar passar à minha frente os miúdos que vinham comprar papéis para relevação de faltas, impresso para testes, uma caneta, um lápis...
Olhei-os com saudade, é certo. Um alívio também, porque ensinar hoje não é coisa simples.

Despedi-me da D. Isabel. E trouxe para casa o quadro naïf que, no seu colorido e imaginação, não envergonhariam o douanier Rousseau. Com uma dedicatória amiga...



As cores vivíssimas, a sugestão dos espaços sem fim, perto do céu, da flora desconhecida para nós, tudo dá a imaginação criativa da autora. 

Os roxos vivos, os rosa-salmão, os amarelos queimados dos ramos das palmeiras secas. O anilado das rochas junto do céu quase da mesma cor.
O tempo parado para sempre. 
As saudades da sua África estão lá... Onde nunca mais voltou. Onde nunca mais voltará.



Aqui  fica, para poderem apreciar bem, o quadro a canetas de feltro da D. Dores! Deixo-o em todos os seus pormenores, para verem bem a riqueza e a poesia que nele vive...



5 comentários:

  1. Muito bonitos. Boas memórias, bons ventos que o tempo traz.
    Beijinho. :)

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  2. É um lindo quadro!
    Muito bonito e com pormenores encantadores.
    É pena, que as pessoas com talento nem sempre possam desenvolvê-lo.
    É uma bela recordação.
    Mas essa senhora ainda é viva, ou quando diz que ela nunca mais voltará, quer dizer que faleceu?

    Um beijinho grande e um bom fim-de-semana

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    1. Tens razão, Isabel, é muitas vezes injusta a vida nas oportunidades que (não) dá... Ainda está viva! Encontrei-a há umas semanas e lá ia de chapelinho... bom domingo!

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  3. A vida é um processo mágico na medida que avança no curso dirigível pela qual vivemos cada dia, como se fosse o último sem se dar conta que momentos isolados como esse é que oferece sentido pelo que realmente vivemos. Um gesto pode mudar a conspiração do universo, lançando caramanchão florido no caldeirão de sentidos e continuidade do que muitos simplesmente passa pela vida em brancas nuvens. Goethe certa vez disse: “ler é a arte de desatar nós-cegos” e como amigas de um patrimônio cultural do ensinar, fica claro tamanha afeto além das aparências. Parabéns e um ótimo final de semana do seu amigo além mares...Mr. Butterfly

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  4. O quadro é lindo, e tê-lo em casa uma sorte, suponho que merecerá um lugar nalguma parede, e de vez em quando te fará recordar a uma pessoa que sempre estava triste. Se lhe tivesses perguntado porquê, talvez te tivesse contado uma história tão interessante como o que pinta. Quem sabe! Gostava de ter conhecido uma senhora triste com chapéu que pintasse tão bem, e ir a ver o mar com ela...
    Beijinhos

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