sábado, 21 de fevereiro de 2015

UM LIVRO TERNO E BOM, “LES VALEUREUX", DE ALBERT COHEN


"Les Valeureux", de Albert Cohen é o livro que estou a ler e me tem feito uma óptima companhia, com o seu mundo mágico: o dos primos Solal, os Valorosos, que vivem em Cefalónia e fazem parte da comunidade judaica Romaniota (*), da ilha de Corfu.


Livro invulgar pela capacidade de imaginar situações, e pelas personagens que nos levam a mundos estranhos a a aventuras únicas.
Começando por Pinhas Solal - mais conhecido por Mangeclous (isso mesmo: come-pregos!) por causa daquela vez que, ainda criança sempre esfomeada, no seu apetite incomensurável, comeu um montinho de pregos.

Depois vem Mathathias, o agarrado, e Michael o conquistador e Salomon, o minúsculo Salomon, a saltitar pelas praças cheias de sol, e a falar com as mãos, vivo e sensível. E o tio Saltiel, tio de todos, que os acompanha como um irmão mais velho.

E longe, na Genebra de brumas, vive Solal de Solal, o sobrinho amado por todos eles. Lindo, perfeito, rico.

Encantaram-me estas personagens extraordinárias, a respirar vida e sentimentos. Poéticas, impossíveis de encontrar na vida real (mas desejáveis), porque vivem na imaginação a inventar cada dia, com uma capacidade de engenho e uma maravilhosa maneira de resolver todos os problemas.
Histórias de loucos que o autor, rindo à socapa, nos vai contando. Imagino-os a passear, a irem até ao mar azul, azul, fazer os seus negócios, comer as iguarias que se vendem por toda a parte: as azeitonas, os frutos secos, as melancias vermelhas, os doces de mel, o peixe acabado de fritar. A botarga que Salomon traz e que Mangeclous pede para ser ele a comer toda porque é ele quem aprecia mais a botarga, explica. E lá vão juntos, lado a lado, de dedo mindinho dado até ao porto…

"Vejo" com eles a cor dos dias, o mar  azul ou verde, as comidas cheias de perfumes de especiarias de Cefalónia, a alegria de viver! E vejo-os que vão, lado a lado, de dedo mindinho dado, até ao porto…

rua de Corfu

O incrível Mangeclous mais os seus cursos, o seu CV inventado, a universidade que cria de um dia para o outro e de que é o reitor, evidentemente, as profissões inumeráveis, de advogado a dentista de cavalos, médico e curandeiro, às superstições, às maldições por "scaramanzia", para evitar o mau-olhado, e aos desabafos e às mentiras.
E Albert Cohen ri-se, com eles, enquanto nós rimos também. Com delicadeza, humor e poesia. Bom humor e loucura boa. 

São deuses, são homens estes Valorosos  sobre quem o tempo não tem qualquer poder e que transformam em sonho tudo aquilo em que tocam? Embriagados de sol, o de Israel e o da Grécia, mais embriagados ainda de palavras que lhes vêm à boca – os valorosos passam por ‘Solal’, ‘Mangeclous’ e ‘Belle du Seigneur’ sem ganharem uma ruga nem um pedacinho de juízo.” (apresentação, edição Gallimard, 1969)
Porém, de súbito, passa nas suas páginas um vento gélido e sentimos um calafrio percorrer-nos. Albert Cohen, judeu grego, nascido em Corfu, pensa na guerra, no passado daqueles homens, nos familiares mortos em Auschwitz. Na angústia e na tristeza da mãe. Na sua tristeza.

A caneta parou e vi de repente o meu povo na terra de Israel, adolescente de um augusto passado, antiga Primavera, viril beleza revelada ao mundo. Louvor e glória a vós, irmãos de Israel, vós adultos e dignos, sérios e de poucas palavras, combatentes corajosos, construtores de uma pátria e de justiça, Israel israelita, meu amor e meu orgulho. Mas o que hei-de fazer se amo também os meus valorosos que não são nem adultos nem dignos, nem sérios, nem de poucas palavras? Vou escrever pois sobre eles, e este livro será o meu adeus a uma espécie que se apaga de que quis deixar um sinal depois de mim, o meu adeus ao ghetto onde nasci, ghetto encantador da minha mãe, homenagem à minha mãe morta.” (p. 94)

E lembra a mãe e recorda aquela tia, única sobrevivente dos campos, que enlouqueceu, e que, todas as manhãs, se sentava à janela à espera que o marido e o filho voltassem para casa. E dizia todos os dias: “Sei que vêm aí hoje”. Mas eles nunca chegam. Nunca voltarão. E ela morre também.
À mãe dedica páginas de amor maravilhosas, em "Le livre de ma mère". Deixo algumas capas da 'Folio' (Gallimard), cada uma mais bonita do que a outra!


E o autor faz um intermezzo na história dos Solal, e ouvimos o seu lamento e a pergunta: “Como sorrir? No entanto, é preciso fazê-lo e continuar a viver e a sorrir com eles, continuar o pecado de viver esperando a morte próxima, a minha morte, depois da morte da minha mãe (…). Sim, sorrir e mesmo rir com os Valorosos, rir com as minhas tristezas e com a angústia da minha mãe, a angústia nos olhos dela que me espera, a mesma dos meus olhos ainda vivos.” (p.238)
E nos Valeureux há páginas escritas com amor e ternura, com nostalgia e com o prazer de recordar. E, para o leitor, o prazer de ler: porque escreve muito bem! 
Livro terno e bom, repito, em que o humor e a auto-ironia judaica -aliados `lucidez e à loucura- conseguem cenas de um cómico inigualável na literatura! Páginas com figuras e cenas hilariantes inesquecíveis. E a beleza da ilha - que descreve com tanto cuidado, com tanto sentimento, com tanta pureza...
Ilha de Corfu

“De volta à rua, uma leve melancolia invade-o de novo e vai sentar-se no pequeno muro que pendia sobre os banhos de Nausicaa. Com as pernas penduradas, no ar palpitante de calor, admirou uma vez mais o Mar Jónio. Dourados, os raios de sol atravessavam obliquamente a água esverdeada, e atingiam os seixos do fundo miraculosamente visíveis e tão puros. 

Ó beleza, perfume inicial, odor do mar. Esta beleza um dia teria de a deixar. Era apenas um dos seres humanos que se sucediam há milhares de anos, um humano que morreria em breve. E dentro de milhares de anos a seguir à sua morte, ninguém pensaria nele, ninguém saberia que tinha existido e, na verdade, nunca teria existido. Ó inexistência durável no futuro.” (p.232)
Corfu e a cidade de Kikheria
Este é o quarto e último volume da Tetralogia que Albert Cohen quis dedicar a estas personagens. Teria desejado que fizesse parte de ‘Belle du Seigneur’, mas os editores preferiram separá-los. Desequilibraria o equilíbrio do romance Belle du Seigneur.

A tetralogia é formada por “Solal”, “Mangeclous”, “Belle du Seigneur” e “Les Valeureux”.
Uma leitura cheia de frescura e ingenuidade sabe bem, face à realidade incerta e violenta dos nossos dias, leitura que se torna preciosa porque nos dá vontade de (apesar de tudo) continuar a viver! 
Em 1988, o realizador israelita Moshe Mizrachi recria estas personagens no seu "Mangeclous". Com actores maravilhosos é com certeza um espectáculo único. Não o vi, mas vou já à Amazon encomendar!
Breve nota sobre o autor:
"Albert Cohen era um judeu romaniota que nasceu em Corfu, na Grécia, em 16 de Agosto de 1895 e morreu em Genebra em 17 de Outubro de 1981. Ainda criança, a família vai viver para Marselha onde faz os estudos secundários. Em 1914, vai estudar Direito para Genebra. Nacionaliza-se suíço em 1919. Durante a a guerra parte para Bordéus e dali para Londres, onde teve uma acção importante. De facto, desde 1944, que trabalha como conselheiro jurídico junto do 'International Committee for Refugees' - de que faziam parte, nomeadamente, a França, o Reino Unido e os Estados Unidos da América. É encarregado da elaboração do Acordo Internacional de 15 de Outubro de 1946, relativo ao estatuto e à protecção dos refugiados. Em 1947, regressa a Genebra, onde vai ser director de uma das instituições especiais das Nações Unidas. É Oficial da Légion d'Honneur.
Escreveu em francês. Em 1968, é-lhe atribuido -pelo seu romance "Belle du Seigneur" o Grand Prix du roman de l'Académie Française. 
* * *

 (*) "Os judeus Romaniotas eram uma comunidade presente na Grécia desde os tempos ‘helénicos’. Terão chegado depois do 1no 70 da E.C.
Trata-se de uma cultura diferente, um grupo que falava o Yevanic (dialecto gregoo) ou o Grego moderno. Estavam espalhados pela Grécia (Tebas, Joannina) e pelas ilhas Jónicas de  Corfu, Chalci, Chos, Lesbos, Samos, Rodes e Chipre. 
Não têm ligação com outros judeus chegados à Grécia em 1496, depois da expulsão dos judeus de Espanha e Portugal: os Sephardim. 
Como nada têm que ver com os Askhenazim nascidos na Europa Central
Judeus, em Joanina, deportados em 25 de Março de 1944


Durante a ocupação da Grécia pelas “Forças do Eixo "(Alemanha, Itália e Japão), a maioria destes judeus foram enviados para os campos de concentração e  foram mortos. Cerca de 80% dos judeus é deportada e morre nos campos. Só de Tessalónica foram deportados 49.000 judeus Romaniotas e Sefaradim. E por lá morreram. 
Alguns foram salvos pela Igreja Ortodoxa e por cristãos que os esconderam em casa."


6 comentários:

  1. Deve ser um livro giro. Vou espreitar ao Wook a ver se há alguma coisa do autor em português. Conheço o nome (talvez daqui do blogue da Maria João) mas não me lembro de ter visto nenhum livro dele.

    As capas dos livros são muito bonitas.

    Um beijinho grande e um bom domingo:)

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    1. Isabel, sei que há "Bela do Senhor" em português, não sei a editora...Bom domingo!

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  2. Li há muito Bella del Señor de que gostei muito, fiquei com vontade de ler "Come Clavos", ou seja Les Valeureux , e talvez porque não encontrei ou não procurei, fiquei sem ler . Agora vou procurar en Amazon.
    Beijinho.

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  3. Estive a ver no Wook, mas em português não há nada. De qualquer maneira vou procurar na Bertrand ou à Cláudia.
    Obrigada, Maria João. Um beijinho grande

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  4. Sempre um espaço que me faz revisitar memórias e prateleiras

    Grato pela partilha

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