segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Pelas ruas de Trieste, no Outono, e em redor da literatura



O mar de Trieste e as suas ruas e bairros. Não me cansarei de repetir as maravilhas da cidade que fica lá bem ao norte da Itália, perto da Ístria e da Eslovénia, no Adriático.
A tranquilidade, o tempo que se desdobra, calmo, à nossa frente, os dias que se vivem pacíficos, sem pressas, sem atropelos. 
Os cafés sóbrios e confortáveis, muitos deles lugares de leitura e de estudo escolhidos pelos jovens e pelos menos jovens, as ruas amplas, a quantidade de  livrarias - as gentes sem agressividade: tudo é acolhedor para quem chega. 
Sem exageros, nem trataments especiais para o turista, que é, apenas, uma pessoa como as outras. 
No fim de semana em que chegámos  desta vez, realizava-se a Regata Barcarola e havia sobretudo turismo interno. Maravilhosos barquinhos brancos em cima do mar!
Barcarola, 2015 (net)

chuva, na Piazza de l'Unità

A Piazza dell' Unità deslumbrou-me de novo. Já a conhecia de outros tempos. Bela e nobre, aberta de dia como de noite. 
Ver chover na Piazza,  bebendo um chá quentinho no Caffè degli Specchi, é uma sorte, um momento inesquecível. 
Como o é visitar o "Caffè San Marco", ou o "Tommaseo" ou do "Ex-Urbanis", hoje Excelsior. Com tantas "presenças" em cada um deles.

Voltarei, ainda, a falar de Trieste! 
Hoje quero lembrar uma cena passada na Via degli Artisti, que fica antes da Via del Monte, onde era o antigo bairro judaico, o "ghetto". 
o "gueto" de Trieste

Os "guetos" foram sempre lugar situados  fora do centro das cidades, onde as famílias se acumulavam em prédios altos porque o terreno era sempre exíguo e os judeus muitos e com poucos direitos a espaços.

Mais tarde, criou-se uma classe média judaica, com dinheiro, ligada ao comércio e à banca. Trieste era um grande porto no Mar Adriático. Onde predominou durante anos uma cultura mista em que a a cultura mittel-europeia e judaica predominavam.

Diz Jan Morris (1) no seu livro sobre Trieste: "(...) os judeus vivem ainda em Trieste. O velho gueto, na zona detrás da Piazza dell' Unità, foi em grande parte demolido devido ao desenvolvimento urbanístico, o que resta é hoje uma zona "na moda" -como aconteceu em muitos guetos da Europa: abundam livrarias, lojas de antiquariado, galerias de arte e locais  de restauro. Aos domingos há uma 'feira da ladra'. Na via del Monte onde se acolhiam os visitantes judeus de passagem existe hoje o Museo Ebraico.(...) Aqui e ali sobrevivem vielas medievais abandonadas ou em demolição."
Lembro o escritor e dramaturgo, Italo Svevo (Aron Hector Schmitz), nascido, em 1861, numa família de religião judaica, em Trieste – cidade que pertencia ao Império Austro-húngaro.  

De pai alemão e mãe italiana, Svevo é o símbolo da cultura mista da cidade. Em 1874, vai estudar, para a Baviera, línguas, literatura e matérias ligadas ao comércio. Volta para Trieste em 1878 onde termina os seus estudos comerciais.  É o autor de grandes livros como "La coscienza di Zeno" ou "Senilità". 
Italo Svevo, pequena escultura em terracota

Quando o pai morre e deixa a empresa falida, ele vai trabalhar na filial do Banco Union de Vienna. A sua biculturalidade é, no entanto, vivida sem conflito. Em harmonia. Os escritores clássicos italianos estarão a par das leituras de Nietzsche ou Shopenhauer. Morre, estupidamente, em 13 de Setembro de 1928, depois de ser atropelado por um carro. 

Se tivesse vivido alguns anos mais tarde,  teria sido "apanhado" pelo nazismo. De facto, em 1938, com a promulgação das leis raciais, os judeus triestinos foram proibidos de partir. Mesmo que quisessem, não podiam viajar, portanto, nem entrar nem sair da cidade. Alguns conseguiram esconder-se no interior da cidade.
 Arturo Nathan, "O mar de gelo", também chamado "O exilado"

Como diz Morris: "Trieste, nos anos 30, enquanto se preparava a catástrofe, desempenhou um papel de honra, ajudando os judeus da Europa Central a fugir ao seu destino. Havia cerca de 5000 judeus na altura, e Trieste era chamada porta de Sião.(op.cit. pág.111)

Por ali passou Albert Einstein, entre muitos fugitivos. No entanto, até 1938, os triestinos sentiam-se relativamente seguros. Antes de 1939, alguns (como por exemplo Giorgio Voghera) decidem fugir para Palestina então sob o Mandato Britânico onde existiam já várias colónias de judeus, mas não era muito frequente. Giorgio Voghera (1908-1999) vive em  Jaffa - disso tudo fala 'Carcere à Giaffa') e só regressa em1948.

Estavam, apenas, "relativamente seguros"...
"Em 1943, escreve Morris, foram apanhados pela História. Os nazis apoderaram-se de Trieste. Algumas centenas de judeus conseguiram fugir para a Suíça ou mesmo para Itália. Alguns, poucos, esconderam-se na cidade até ao fim da guerra. Cerca de 700 triestinos judeus, porém, foram condenados à morte ou à deportação." (op.cit. pg 112)

Em San Saba, na chamada Risiera San Saba (2)- edifício onde se guardava o arroz e se pelavam os bagos- é criada logo nesse ano uma caserna da polícia que, depressa, se vai transformar no único campo de extermínio de Itália. 
Risiera San Saba, hoje Museu

"Porque -continua Jan Morris -os alemães declararam Trieste como parte integrante do Reich." 
Com as leis do IIIº Reich, em vigor.
Trieste é uma cidade ainda hoje ligada à Literatura. Andei a passear por ali, frequentei os cafés "literários", pensando em Italo Svevo e em James Joyce -que lá viveu tantos anos -e que foi professor de Inglês de Svevo. 
James Joyce, escultura em terracota
James Joyce
James Joyce e Il Ponte Rosso

Recordei a figura de Giorgio Voghera -pessoa simples, encantadora que conhecemos, há muitos anos, no Caffè Stella Polare. 
Caffè Stella Polare

Lembrar o que escreveu, dos "anos de Trieste" ou os livros "Nostra Signora Morte" e "Anos da Psicanálise" em que faz reviver a Trieste dos psicanalistas, alunos de Freud,como Edward Weiss que vai tratar o pintor Arturo Nathan cuja pintura (próxima dos "metafísicos") pus acima e que sofria de neurastenia. 
o Caffè Tommaseo

E outros, anteriores, que li, ainda em Itália, dois escritores que foram amigos da juventude e que, por isso talvez, e pelo entusiasmo e amor à sua cidade, aproximo sempre: Scipio Slataper escritor e poeta que morreu tão jovem, na I Guerra, em 1915, e o amigo Carlo Stuparich que morre como ele, na Guerra, nos Montes Cengio, um ano mais tarde - e o irmão deste, Giani Stuparich. 
Scipio Slataper (1888-1915)
Monte Cengio

Carlo escreveu apenas “Cose ed ombre di uno". Slataper escreve "Il mio Carso" sobre as gentes e as montanhas do Carso (publicado em 1912, com 26 anos).
Carlo  Stuparich (1894-1916)

Carlo  Stuparich com a mãe
Giani Stuparich (1891-1961) com Umberto Saba

Caffè San Marco, café-livraria 

Outro que lembro é Umberto Saba (1883-1957) poeta triestino de origem judaica também de que li muitas coisas. Impressionou-me acima de tudo a sua simplicidade. Mas quem disse que a simplicidade é simples? Parece evidente, mas não é: uma poesia essencial, das coisas e sentimentos comuns da vida, pode ser muito difícil. 

Faço minhas as palavras de alguém que muito o ama: 
"Foi-me difídil entrar na obra de Saba cuja aparente simplicidades -rigorosamente trabalhada- enraíza no puro clássico. Considerava mestres Dante e Petrarca. Cheguei a seguir uma antologia escolar da sua poesia, anotada, do ensino secundário, para o entender. E, pouco a pouco, consegui. Saba é um poeta visceralmente independente e cioso da sua visão da vida." (4)
Saba, traduzido em japonês

Deambulando, procurando vestígios -ou sombras- a saber que andaram por aqueles cafés, viveram os duros invernos com a bora e a chuva gélida. Mas agora o tempo está ameno e as águas azuis da baía reflectem todas as luzes em redor.


E volto ao "gueto": na Via del Monte - ao lado da Colina de San Giustolá estão as casas altas, típicas dos "guetos", algumas já restauradas, outras ainda entaipadas. 
Uma ou outra loja de modas, um bar muito singelo mas agradável, um clube e uma sala de ginástica. Para baixo é a Via degli artisti, para cima, sobe-se pela rua del Monte

Num pequeno hotel de duas estrelas, colados ao vidro de entrada, vêem-se caracteres de uma língua desconhecida. Enquanto espreito, aparecem uns jovens estrangeiros que entram desenvoltos. Um voltou a sair e, vendo-nos ali parados, pergunta se não queremos entrar. É curto o diálogo, em italiano:
- Podem entrar... E sorria. 
Do hotel veio um senhor de certa idade vestido de escuro que me pareceu um religioso. Cumprimentou-nos e explicou:

- Em baixo, está escrito em pashtun(3). Por cima, está em árabe. É um centro de acolhimento.
- Sim, somos refugiados. Eu sou paquistanês.
E o rapaz voltou a sorrir-nos. Havia bicicletas estacionadas ao lado do hotel. Pegou numa.
O que dizer? Achei que devia dizer alguma coisa, porque os vi limpos, arranjados, com uns cadernos na mão. E saiu-me um:
- Que belo trabalho!
O senhor de idade agradeceu.
Mas era tão pouco o que lhe dizia - para falar da verdadeira compaixão, da generosidade, da ajuda aparentemente desinteressada, que via nele.
Sei que há outros centros, sei que há coisas que funcionam mal, disseram-me depois, centros que não cumprem.
Sei que muita gente não quer “aceitar” a ideia dos “profughi” em Itália como por cá como pelo resto da Europa. Mas o que fazer então?
 A mim agradou-me o sorriso daqueles refugiados.


(1) Jan Morris, "Trieste o del nessun luogo", Il Saggiatore, 2014 (The meaning of nowhere", 2001)
(2) La Risiera di San Saba - hoje recuperado- é o monumento histórico, o Museu Cívico da cidade.
(3) Pashtun é uma língua do grupo etnolinguístico que se fala numa parte do Paquistão e do Afganistão.
(4) Manuel Poppe e Umberto Saba
http://sobreorisco.blogspot.pt/2011/04/o-universo-singular-de-saba.html

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Saíu no dia 20 a Correspondência de José Régio com seu irmão Antonino...

Saíu novo volume de Correspondência de José Régio, desta vez com o irmão Antonino. Régio tivera uma irmã, Ana, e quatro irmãos: Júlio, Antonino, Apolinário e João Maria. Todos dedicados às artes, literatura ou pintura ou desenho, excepto Antonino a que Régio chamava o irmão à parte, o irmão que vivera sempre longe.

ilustração de Apolinário para 'Poesias' de Régio
Por estranho que pareça  - porque, no fundo, deviria estar a par do que se relaciona com José Régio que muito admiro, como sabem-  escapou-me a saída da Correspondência de Régio com o irmão Antonino que foi para o Brasil aos 17ou 18 anos e nunca mais voltou. 
Antonino nascera em 1905, poucos anos depois de Régio (1901), emigrara para o Brasil, em 1924, de nunca mais voltou. Nunca mais se reuniria com a família. 

Estranho, também, porque  estive quase para “copiar” uma passagem de uma carta de Régio para o pai, pouco tempo antes de ele morrer  em que se referia à conversa  que tivera com o pai para o nome de Antonino o dinheiro de uma conta existente no Brasil.
E estranho, finalmente, porque foi o comentário de um leitor do meu blogue que me alertou! 
outra ilustração de Apolinário


E lá fui à procura, na internet. Encontrei no blogue de um portalegrense, "largo dos correios" (1) - que muito sabe de Régio- tudo o que precisava de saber. 
De facto, em 9 de Março de 1957, José  Régio pergunta ao pai, no post scriptum da carta: 
"O pai já tornou a pensar nessa mudança de nome (para o Antonino) do dinheiro do Brasil?"
José Régio lembrava-se muito desse irmão, di-lo ele no seu Diário.
O livro “José Régio, Correspondência com seu irmão Antonino”, (Chiado Editora) foi apresentado, no dia 20 de Novembro, no Tivoli Fórum, da Avenida da Liberdade, em Lisboa (2).
Reli n'o Diário Íntimo, o que escreveu no dia 7 de Outubro de 1965, dia em que soube da morte do irmão:
"Recebo hoje de chofre a notícia da morte do meu irmão Antonino. Foi para o Brasil com 17 ou 18 anos (*) e nunca mais o vimos. (…) talvez o mais infeliz de nós todos; pelo menos um irmão à parte, com um temperamento muito paticular. Uns nervos terríveis que, em parte, nos ensombraram a infância, ao Júlio e a mim. Não quis estudar, quis ir para o Brasil (…) e lá foi, lá ficou, nunca mais o vimos. As partilhas por morte do nosso pai fizeram com que ultimamente eu me correspondesse muito com ele."

E recorda "(…) O vivo interesse que mostrara para que não se vendesse nenhuma das nossas casas de Vila do Conde. Ele, que resolvera nunca mais voltar a elas! Bem gostaria de poder trazer para cá, para perto dessas casas, para o nosso jazigo de família, os seus restos mortais. O Antonino! Já lá vai o Antonino, quatro ou cinco anos mais novo do que eu. (…) Caio num melancólico devaneio em que se misturam, me oprimem tantas recordações não só dele como de todos os outros que partiram…” (pg.366)
 De notar que o poeta conseguiu que os restos do irmão voltassem para Portugal e estão hoje juntos em Vila do Conde.

(2) Iniciativa de 'CHIADO, Clube Literário & Bar'', realizou-se na Galeria Comercial Tivoli Fórum. A Correspondência é integrada na Colecção Passos Perdidos. 


quarta-feira, 25 de novembro de 2015

A "Correspondência familiar de Régio”, o reencontro com um amigo!


Vou lendo devagar as cartas de Régio aos pais (1). Como se o reencontrasse depois de tantos anos. E noto a ternura com que o poeta se dirige à mãe, e isso enternece-me logo: as suas queixas, a necessidade de apoio, de mimo que, implicitamente procura nela;  e o desejo e a preocupação de, mesmo longe, a acompanhar e amparar. 

As cartas começam sempre por “querida mamã” e “querido papá”, mesmo quando já é um homem crescido. A partir do dia em que a mãe morre, muda completamente e passa a chamar “querido pai”. Como se de repente a criança que ele se “sentia” quando a mãe era viva, tivesse crescido de repente e deixado de o ser. 
o pai de José Régio

Um desgosto que o abala profundamente mas de que nunca fala nas cartas ao pai, mesmo quando lamenta, no Natal de 1946, depois da morte dela, não estar em Vila do Conde. Sabe que o pai vai ter a companhia do resto da família, ele prefere ficar isolado com a sua dor.

Leio das dificuldades financeiras da família Reis Pereira, da coragem que era necessária para chegar ao fim do mês tantas vezes. Na vida do meu amigo José Régio quantos problemas de dinheiro, quantas “contas” com os pais, tantas pequenas dívidas de uns para outros, tantos pequenos “dramas vulgares”.
E, sempre, a preocupação de ter as contas em dia, sentindo que “pesava” aos pais, enquanto não tivesse uma profissão e o seu trabalho remunerado.
Régio em Coimbra -foto de Edmundo de Bettencourt (1929)

Fala de Coimbra e dos estudos e dos quartos alugados, do problema para comprar um sobretudo ou um fato novo. E outras pequenas coisas para que vai precisar da ajuda dos pais, “numa terra interesseira como esta, em que todos os favores se pagam.” (carta de 1924, pág. 99)

E mesmo nos primeiros anos de professor, em Portalegre (a primeira carta, de Portalegre, para o pai é de 9 de Dezembro de 1929), as dificuldades continuam. 
Tempos em que o que ganhava era pouco, e nem sempre pago a horas. “Este mês pagam só mais para o fim”, escreve muitas vezes.
Nessa primeira carta, fala do frio a que não estava habituado e da necessidade de comprar roupas quentes: “preciso de alguns objectos e alguns livros, e de um colete de lã, além de meias de lã, porque o frio aqui é respeitável.”
Não é fácil a adaptação ao clima continental, aos frios, aos ventos, às trovoadas que giram sobre a cidade horas a fio. 
Em 9 de Outubro desse primeiro ano escreve à mãe iniciando assim a carta: “Brevemente escreverei com mais vagar acerca deste meu desterro…” (pg. 20)
E, pouco a pouco, vai contando das trovoadas súbitas e violentas e das dores de cabeça que o atormentam: as suas “alergias”: “tenho dores de cabeça bastante frequentes nos últimos tempos. Mas já sei que são devidas às trovoadas, ventanias ciclónicas, atmosferas pesadas e súbitas alterações de temperatura”.


Assim que equilibra as finanças, vai, por sua vez, ajudar os pais, e participar com o seu dinheiro nos estudos dos irmãos mais novos, Apolinário e João Maria, que estavam na universidade. 
E preocupa-se com o crescimento e com os estudos do sobrinho Ramiro, filho de Apolinário, que foi criado pelos pais de Régio. 
desenho de Régio "para o Ramiro" (1967)...


com as empregadas velhas. E com a madrinha, as primas e sobrinhas e afilhadas - e com as prendas para elas...
E lá segue todos os meses um vale do correio com o que consegue mandar, com uma nota explicativa das coisas a que esse dinheiro se destina.
José Régio, anos 40

Leio dos seus problemas, do difícil trabalho de professor, com vencimentos baixos, dos pequenos “aumentos” que ele aguardava com ansiedade para poder “equilibrar” os dias - mas que sabe virem a significar “mais trabalho e mais dificuldades” e mais exigências numa profissão a que tanto se exigia e se revela tão difícil nesses tempos dos anos 30 e 40. E da adaptação complicada a tudo isso, num sítio tão longínquo da sua terra natal.
Régio, auto-retrato


No Inverno de 1941, escreve ao pai: “(…) o Inverno este ano tem sido terrível, e não só agora em que foi terrível em todo o Portugal. Há mais de dois meses que não há senão frio insuportável, (dou algumas aulas cheio de frio do princípio ao fim), chuvas violentas que entram dentro das casas, neve, ventanias furiosas, etc. Do que gostei foi de ver campos e montes cobertos de neve, que nunca tinha visto senão no cinema.” (pg 123)
Anos mais tarde, habituar-se-á à cidade do Alto Alentejo, às diferenças do clima, aos frios intensos e aos meses de calor tórrido, às pessoas,  sempre, porém, com saudades da sua Vila do Conde de clima suave - e da comida a que estava acostumado. 

De facto, quando, em 1945, surge a hipótese de uma vaga do seu grupo no liceu da Póvoa do Varzim fica dividido e inquieto, apesar de lhe agradar a possível aproximação da família. "(...) agora que tenho aqui a minha vida organizada, o meu ambiente de trabalho preparado, a minha casa arranjada a meu gosto, etc., etc. Já gosto de Portalegre e do Alentejo, com a condição de sair daqui de vez em quando, a férias ou de passeio. (...) demais, já estou afeiçoado a este liceu, a alguns colegas, aos rapazes que são meus alunos desde o primeiro ano." (pg. 128)
Itinerário Fotobiográfico (4)

Perpassa pela correspondência a sombra dos tempos, as dificuldades que se viviam, durante os anos da guerra e no pós-guerra, a crise enorme de que tantas vezes fala (“todos estamos mal, só os ricos é que não”). Falta o açúcar e a manteiga no Sul, falta o arroz ou o azeite no Norte. E ele encarrega-se de mandar aos pai um garrafão de azeite e uns pacotes de arroz sempre que pode.
“Eu queria enviar mais e melhor. Mas tudo falta!

Em 1941, escreve: "digo ao papá estas coisas para não estar desanimado de todo -pois, a não serem os ricos, todos têm agora dificuldades."

Em 1946, na última carta para a mãe -sem data- dirá: "Já estou morto por Vila do Conde. Embora, no fim deste anos de aclimatação, já goste muito, agora, de Portalegre, ou antes : dos seus belos arredores e da vida à minha maneira que aqui vivo (...)"

Um dia, a mãe, a luz que tanto amava, apaga-se. Assiste uns dias á sua lenta agonia. O golpe é demasiado brutal. Fecha-se em si. 
Em 23 de Dezembro de 1946, escreverá a propósito do Natal: "Eu cá o passarei como Deus quiser. Persisto  na ideia de ficar em casa, apesar dos convites, porque me sentirei melhor assim. (...) Cá me entretenho com os meus livros, meus escritos, as minhas velharias e as minhas recordações." (pg. 135)

No Diário pouco escreverá dessa dor pungente. Conta apenas dos pesadelos que começa a ter, a partir da sua morte. Pesadelos em que a mãe lhe aparece, viva e morta ao mesmo tempo, deixando-lhe uma angústia insuportável (Páginas de Diário Íntimo, pg. 82.)
"Ela estava ao mesmo tempo viva e morta,  -o que me causava uma angústia e um desespero indizíveis. (...) Nunca sonhara que ela pudesse, antes de morrer, decair a essa agonia lenta e humilhante. (...) E ainda não posso perdoar a Deus estas coisas!" (29 de Outubro de 1946)
E sonha que a mãe chega um dia à loja do pai, vestida de preto -e "era de luto por si própria. Porque ela já tinha morrido uma vez; e agora estava outra vez viva mas em  contínuo perigo."
José Régio, o pai e os irmãos João Maria e Júlio
A vida continua difícil de se viver. Nessa carta ao pai, antes do Natal, queixa-se: 
"Do miserável aumento que o governo entendeu dever conceder-nos já nada fica: subiu o preço da Pensão, subiu a lavadeira, subiu a soldada da mulher que me serve, subiu o preço da luz, etc.,etc. Mas é assim em todo o mundo não vale a pena a gente estar a consumir-se e a matar-se antes do tempo. (...) A mim o que me vale, ainda é o que vou ganhando fora dos meus vencimentos de professor. Estaria bem aviado se tivesse de me governar só com eles." (p.136)

Ao pai vai continuar a escrever e a falar dos problemas económicos, das suas publicações, das críticas e dos sucessos na literatura. O pai de Régio interessava-se por teatro e pelo que o filho escreve e será sempre um interlocutor nestes assuntos.

Numa das últimas carta ao pai (a última é  no dia 1 de Abril de 1957 e o pai morrerá a 24 de Abril), conta-lhe, para o animar, de um espectáculo da radiotelevisão. E da sua próxima ida a Vila do Conde, a férias.

" Houve em Lisboa, um espectáculo com a minha peça em um acto 'Três Máscaras'. Já me pediram, de lá, outra  peça que demorasse trinta minutos e talvez eu lhe mande uma em breve! Já falta pouco para as férias da Páscoa, e por isso já começo esperando voltar a Vila do Conde." (22 de Março de 1957)
Casa Museu José Régio (e o gigantesco Centro Cultural!)

* * *
Volto atrás, no tempo. Recordo-me de o cumprimentar, com um beijo, eu miúda pequena, no largo do Liceu, sem saber do que se passava na sua vida de todos os dias. E revejo a sua toilette cuidada, sinto o seu perfume de lavanda, e penso hoje sabe Deus com que dificuldades.
Agora, através da sua voz, vou revendo a minha cidade, em tempos que não conheci: as “trovoadas, as “ventanias ciclónicas”, ou as “atmosferas pesadas e súbitas alterações de temperatura” de que não me lembro. E as coisas que, como ele, sofria: o frio nas salas geladas do liceu em que -ele e eu- tentávamos aquecer, sem que nenhum comunicasse ao outro o que sentia. E é como se tivesse voltado à minha infância...

Não vou contar tudo o que me impressionou, nem da proximidade que voltei a sentir deste amigo tão antigo. Há mais mundos? Quem sabe? Contento-me em apreciar o que sempre encontrei nele, o amor e o respeito pelo outro, e uma grande humanidade. 
E a ter saudades dele!

"A pouco e pouco, vou chegando.
Não sei a quê. Sei que, na tarde ruiva,
Já mal respira, brando,
O Vento que só raro ainda uiva."


(1) As cartas de Régio foram publicadas, em 2010, com o título de “Correspondência familiar José - Cartas a seus pais”, introdução e notas de António Ventura, na editora Caleidoscópio, (colecção de José Régio). Editora que publicara em 2007  um outro livro sobre o escritor, da autoria de Maria José Madeira de Ascensão, A Personagem Feminina em 'Histórias de Mulheres'.
(2) a mãe de Régio, Maria da Conceição Reis, morre em 28 de Abril de 1946
(3) Páginas de Diário Íntimo, IMPRENSA NACIONAL/CASA DA MOEDA, 2002
(4) As fotografias de Régio e familiares foram tiradas do livro José Régio, Itinerário Fotobiográfico, ao cuidado de Isabel Cadete Novais,  IMPRENSA NACIONAL/CASA DA MOEDA