domingo, 26 de março de 2017

O RATINHO E O OURICINHO À ESPERA DA PRIMAVERA...


O tempo vai correndo, incerto. Chuva ou sol? Sol ou chuva? Volta o frio? Sim, voltou. E a Primavera quando vem?
É sobretudo pela Primavera que os amigos aqui em casa esperam. Querem sair, ir para a varanda ver as flores, olhar a rua, sem terem sempre a chuva e o vento. Nos últimos dias, apareceu por aqui um vento fortíssimo e os ramos das árvores agitavam-se como cabelos de bruxas desgrenhadas.
 Apesar do céu azul, o Ratinho e o Ouricinho desesperavam.
- Não há Primavera este ano!?
O passarinho negro pôs-se de sentinela. Todas as manhãs, o passarinho negro fica vigilante, atento ao tempo, olhando o céu e as árvores do liceu.
- Ela já chegou?, pergunta a toda a hora o Ratinho, ansioso.
À espreita de dentro do saco cama de Inverno, onde está embrulhado, segue tudo.
O Ouricinho e a Gatinha japonesa esperam, desconfiados, a resposta do pássaro. Ele fixa o horizonte, agita a peninha branca da asa, e diz:
- Não vejo sinais de Primavera, mas há um cheiro diferente que se sente.
O Ouricinho resmunga:
- Cheiro? Só se cheirar a chuva e a terra molhada!
O Ratinho, num tom triste:
- É cedo, eu sei, faltam uns dias no calendário.
 O Ouricinho grita:
- Qual quê! Só falta um dia!
Ao lado deles, o Ambrósio e o Rei Leão ouvem-nos, sem intervirem na conversa. Atrevi-me a dizer:
- Eu gosto do Outono e até do Inverno mas vocês só querem os dias de sol e de Primavera. O calor do Verão também é apreciado, eu sei, mas...
- Nós somos solares! Somos latinos!, costuma dizer o Ratinho. Brumas e névoas não são para nós!
- Eu gosto da névoa do Outono, -murmura a Gatinha japonesa que costuma estar sempre caladinha. Arrebitou as orelhinhas e olhou-os, um pouco tímida. Dei-lhe razão.
- Concordo com ela, a minha estação preferida é o Outono!
- Ah, mas isso é a tua mania da melancolia…
O Ratinho espreitava o efeito das suas palavras.
- Melancolia? Eu?...
E fiquei a pensar nisso.
Ora, de repente, ontem, ao acordarmos, quando perguntei: "E hoje, passarinho?", ele respondeu:
-Hoje está sol! Mas não sei quanto tempo vai durar...
Ainda mal tinha acabado, já o Ratinho e o Ouricinho tinham saltado da cama para o parapeito da janela.
Correram os três e o Ratinho gritou, excitado:
- Vamos já lá para fora, para a varanda! Vamos ver as flores novas!
- Sim, não perco um minuto sequer, acrescentou o Ouricinho.
Atrás, vinha a Gatinha japonesa:
- Adoro flores! No Japão vai começar as estação das flores de cerejeira!
- Eu sou um Ratinho solar, vou apanhar o sol! Carpe diem!
O macaco Ambrósio e o Rei Leão e a sereiazinha, porém, não acreditaram no dia de sol e deixaram-se ficar no saco que lhes serve de cama.
- Nós cá continuamos a hibernar...

- Pois nós vamos até à varanda! Fica-te com a tua melancolia, ó Jana!
E o Poeta Ratinho ria-se de mim!
Fiquei a pensar que, por acaso, até sou inclinada à melancolia. 
- Só no Outono, claro!, comecei a dizer.
O Ratinho, já no caminho para a varanda, ainda disse uns versos pois não resiste a mostrar a sua cultura literária:
"mon Automne, ô ma saison mentale" 

- É a tua estação mental! Como escrevia o Apollinaire: "Mon Automne éternelle/Ô ma saison/Mentale..." Hihihi! Vou ver as flores!

E correu para a varanda juntar-se com os outros.

- Sim, lembro-me bem desses versos! Pobre Apollinaire (*) que morreu tão novo...
Guillaume Apollinaire

E, enquanto o Ratinho Poeta saúda, com os amigos, a Primavera, deixo-vos uma parte desse belo poema...

                     "Je suis soumis au Chef du Signe de l’Automne
Partant j’aime les fruits je deteste les fleurs
Je regrette chacun des baisers que je donne
Tel un noyer gaulé dit au vent ses douleurs
Mon Automne éternelle
Ô ma saison
Mentale."
(Guillaume Apollinaire, Alcools)


(*) Wilhelm Apollinaris de Kostrowitzky, Guillaume Apollinaire, é um poeta e escritor francês, crítico e teórico do Simbolismo. Nasceu súbdito polaco do Império Russo, em 26 de Agosto de 1880, em Roma, e morre em Paris em 9 de Novembro de 1918 com a gripe espanhola. Combatente na Iª Guerra, foi declarado ‘herói, morto pela França’. Em 1916, foi gravemente ferido, em combate. 

quarta-feira, 22 de março de 2017

Oh, Telavive, se eu te esquecer...

Reuven Rubin, Vista com concerto

"Oh, Telavive!, se eu te esquecer...que a minha mão direita me esqueça…”

Podia também dizer, como o poeta japonês Yamagushi Sodo:
"Esta Primavera na minha cabana
Absolutamente nada
Absolutamente tudo…"

Comovi-me ao ver as fotografias que a Gui tirou em Telavive. Sem poder conter as lágrimas, revi-me a chegar, tantos anos antes, a Israel. O Manuel já lá estava. Eu fui mais tarde, tinha tido que organizar alguns aspectos da nossa mudança para lá. Cheguei em Agosto, com o nosso cão Zac!
 A primeira impressão foi o calor extremo, um calor seco, não como o calor húmido de São Tomé – de onde vinha.  Era o calor de deserto, dos ventos secos e estonteantes, como o scirocco que sentira, tantas vezes, em Veneza.
Depois de cinco anos em São Tomé, que amei mas onde vivi mal muitas vezes, com uma ansiedade imensa, pela falta de electricidade constante; pela falta das coisas a que nos habituamos e que ali não havia; pela sensação de claustrofobia da ilha- ver Telavive foi como uma bênção! Luzes, agitação, cafés por toda a parte, espectáculos, museus, ballet, concertos!
.
A definição de ilha é afinal 'porção de terra cercada de água por todos os lados' - facto que, por vezes, sentimos tão real como a impossibilidade de comunicar com o resto, ou o afastamento consciente do resto do mundo, num zona tropical. Muitos amigos, muita recordação boa, gente amiga, isso sim. 
Como poderei esquecer o senhor Semedo que chamava ao meu cão "compadre Zac"! 
E que me dizia que ficavam os dois a conversar no jardim e a ler o jornal, quando saíamos à noite: "Dotora, Zac só falta falar. Percebe tudo!"
Zac, em São Tomé

Mas a verdade é que, para mim, chegar a Telavive foi um sopro de ar (quente, é certo) que 'redimiu' tudo o resto: a angústia quando o avião partia e só voltava na semana seguinte, o medo do paludismo – medo real pois, nos três últimos anos, tive crises  todos os meses, o receio de ter uma doença grave e tão pouco apoio...
Telavive, vista de Jaffa (foto Gui Poppe)

O aeroporto Ben Gurion, cheio de sol nas vidraças abertas, e de gente nova, fardada ou não, que me acolhia
O encontro com Mr. Israel que vejo entrar pela faixa rolante e trazer o Zac ao colo, e a gaiola aberta ao lado. O Zac meio adormecido ainda que logo arrebitou, ao ver-me. 

Inesquecível esta pessoa - o major Israel- que nesses anos nos ‘protegeu’ e aconselhou, nos levou de passeio pelo país, nos mostrou outra face de Israel. Amigo que não esqueço – e que já não responde ao telefone, como os outros que se foram...

Sim, há sítios que não se esquecem nunca na vida! pela força que têm, pelas marcas que deixam gravadas dentro de nós, pelas situações que neles se vivem, ou, ainda mais importante, pelas pessoas que se encontraram.
Telavive, entrada da nossa casa (foto Gui Poppe)

Oh, Telavive, se eu te esquecer…

Telavive, onde vivi cinco anos, vem-me sempre à memória como um lugar de sonho. Por isso, hoje tive vontade de chorar a ver as fotografias da ‘minha’ casa maravilhosa, na Rehov Lassalle, nº 4-  bem pertinho da Promenade e do mar.
(foto Gui Poppe)


(foto Gui Poppe)

Kikar Atarim, para lá da Hayarkon, uma praça com a decoração mais absurda que me lembro de ver, e a velha discoteca circular, de vidros baços, abandonada. 

Perto da Piscina Gordon, de onde se avistava a Marinha. Onde havia um grande supermercado cheio de confusão, o Café Panorama - e as escadas que iam dar à praia e ao grande Passeio cheio de cafés e de gente viva!
(foto Gui Poppe)

As escadas que, para o fim, o Zac subia ao meu colo quando voltávamos para casa, pela praia. Já cansado, estendia-me as patinhas e eu subia aquela grande escadaria abraçada a ele.
Promenade e escadaria (foto Gui Poppe

Aprendi a ter a consciência de que cada minuto era precioso, cada dia era único, porque ali se sente, mais do que em todos os outros lugares, que a vida não dura sempre, ao contrário dos famosos diamantes, e que é preciso aproveitar o momento que passa e viver intensamente o que nos é dado viver.
Vida e morte estão demasiado presentes naquela terra, a morte ronda demasiado perto para a esquecermos, mas olhando o telaviviano nunca pensamos nisso porque tudo é tão decisivo em cada momento que viver é o pensamento que nos invade todas as manhãs.
(foto Gui Poppe)
Na Rehov Lassalle conheci gente extraordinária, entre eles os nossos senhorios, os Reshef, que foram amigos. A Laura que trabalhava num café à esquina com a Ben Yehuda
(foto Manuel Poppe)

A Laura que vinha nas sextas-feiras depois do trabalho, e antes do 'shabat', tomar um chá comigo. Ficávamos na cozinha cheia de postais de todo o mundo, ensolarada e alegre, a conversar e a rir de tudo. Eu era mais nova e sentia-me renascer naquela terra.
(foto Gui Poppe)

Quis conhecer tudo, ver tudo e lá ia com o Zac passear rua acima rua abaixo, para norte ou para sul, no ‘sherut’, o pequeno autocarro de sete lugares que parava onde queríamos para subir como para descer e pouco importava a distância, pagávamos poucos shekalim – e o Zac não pagava nada. E que nos levava a toda a parte. 

Assim conhecemos toda a rehov Ben Yehuda a pé, fomos parar à Dizengoff, a das lojas e das luzes. E ao Café Segafredo, onde passámos todos muitas horas da nossa vida!
o Zac no Café Segafredo

E também à rehov Sheinkin, perto do  Shouk Ha-Carmel, rua da cultura, dos cafés branchés, das lojas de discos, dos restaurantes com saladas de todos os tipos, das sopas geladas de pepino com iogurte e hortelã, dos ‘falafel’, do sumo de romã em cada canto.
Recordar tudo isto fez-me chorar. Sei que "hei-de voltar um dia", como dizia Branquinho da Fonseca ao seu Barão: "sim, Barão, hei-de voltar um dia e havemos de ir de novo pelas serras à procura da Bela Adormecida, com uma rosa na mão…"
(foto Gui Poppe)

Será que é verdade? Não sei, mas do fundo do coração desejo-o. O que é Telavive? E ver a varanda da casa, lá no alto, onde víamos toda a cidade e onde o Zac, ao meu colo, parecia cheirar todos os aromas do mundo - impressiona-me hoje que tudo isso acabou.
"Absolutamente nada
Absolutamente tudo…"

E penso –como diz o Salmo 39- que “a vida é um momento efémero, um sopro, uma passagem”. Nem sempre é fácil encontrar um sentido para essa fragilidade e precariedade da vida humana.
O Zac, perto do fim (foto Manuel Poppe)

Foi em Telavive que a minha vida me pareceu muito frágil, sim. Foi ali que perdi o meu amigo Zac, que lá ficou para sempre na Terra Santa, no moshav de Udim, onde moravam grandes amigos, que o quiseram receber. Está enterrado debaixo de uma palmeira brava.

Vida precária – como via todos os dias, com as ameaças de atentados, no olhar atento com que se perscrutam os cantos, as ruas sem saída, e os caixotes  susceptíveis de esconderem uma bomba. E onde se continua a andar em frente porque a vida continua, em frente, sempre em frente, como se nada contasse.
atentado no Café Moment (Jerusalém)
mais um atentado


No entanto, foi aí exactamente que pensei que a vida tinha sentido! Havia algo em que acreditar e algo a construir: vivia-se a vida em construção interior constante, na procura de um absoluto qualquer. Indefinido, mas real, apesar de ter tanto que ver com o Sonho e com a Utopia!

E o absoluto é, tantas vezes, uma coisa tão simples! A companhia, o entendimento profundo dos outros, a dádiva de si, a solidariedade! E tudo isso encontrei Em Telavive...
Parafraseando o Salmo 137, posso dizer:
“Oh, Telavive, se eu te esquecer que a minha mão direita me esqueça…”

quinta-feira, 16 de março de 2017

'haikus' de Inverno

Que dizer mais que não tenha dito já sobre estes poemas? Não gostaria de cansar os meus leitores...mas acrescento um pouco mais.

O caçador de sensações - que é o poeta que escreve estes curtos poemas "essenciais", síntese de imagens e de sentidos vários, em simultâneo-  não julga o real conforme a expectativa, mas procura sim prendê-lo tal qual ele é. 
Aqui deixo alguns poemas breves de grande intensidade emocional, na simplicidade absoluta.
Hocusai, Fuji

*
Tusso
Logo existo
Neve da meia-noite
Hino Sôjô
Como nestes poemas de Inverno em que ao céu de Inverno se associa a ideia da morte precoce dos soldados que partem para a guerra e sabem que vão morrer.
*
Céu azul de Inverno –
Quem diria que ia morrer
Antes da minha mãe
Sôma Senshi

Hocusai, Ventania

Ultrapassados? Infelizmente neste tempo de guerras e cataclismos que correm pelo mundo fora, de Oriente a Ocidente, está bem presente aos nossos olhos a morte - e a tragédia dos humanos, quantas vezes causadores eles próprios da própria tragédia! 
*
Para o soldado ferido
Como é frio o céu
Por cima dos altos cedros!
Yokoyama Hakkô
*
*
Só são jovens
Os meu amigos mortos na guerra –
Estalactites
Mitsuhashi Toshio