quarta-feira, 15 de março de 2017

Ainda Jim Jarmusch e o filme "Stranger Than Paradise"

Jim Jarmush sempre me  interessou: um toque de loucura, um toque de “nouvelle vague”, a poesia dos sítios abandonados e dos lugares hoje (des)habitados e vazios do calor que tiveram. Boa realização, também, e com actores bem dirigidos. 
Falo do filme Stranger than Paradise (1984) que revi há pouco (em DVD), depois de mais de vinte anos sem o ver. Com o desejo sempre de voltar a vê-lo. “Atraía-me” filme. Tinha dele uma vaga ideia de vidas perdidas e sem sentido.
John Lurie
Não acontece nada? Sim, e não. Não acontece 'nada', de facto, é a pasmaceira total, mas há a expectativa de algo novo, um desejo de aventura no dia a dia que é de uma monotonia que mata. Num bairro pobre, as figuras são "marginais", sonhadores e passivas e que nada fazem para modificar a vida.

O protagonista é um desadaptado que vive sem saber como nem porque vive, sem nenhum interesse aparente pela vida, desconsoladamente, bebendo umas cervejas por aqui, jogando ás cartas por ali, fazendo paciências na cozinha!

Willie (o actor John Lurie, jazzista, guitarrista dos Lounge Lizzards) é um jovem imigrante húngaro -desenraizado- em Nova Iorque. Viera da Hungria não sabemos bem quando e, por vezes, tem saudades desse sítio que quase não conheceu. Eddie (o actor Richard Edson), o melhor amigo, tem uma história de vida idêntica. Os dias decorrem iguais, repetitivos até à exaustão, entre o café, a rua e os amigos igualmente pasmados. 

Apesar de se passar algures na América, podia ser o "Deserto dos Tártaros", de Dino Buzzati: o Forte no deserto onde soldados e oficiais superiores aguardam a chegada do inimigo: o ataque dos bárbaros que nunca chegará... 
No fundo é uma metáfora das vidas que decorrem sem nenhuma expectativa, nenhuma esperança, nenhuma certeza se não a da morte que virá um dia. E quando a morte chega, nada traz, vence os guerreiros, sem qualquer possível oposição. E tudo é ainda mais absurdo!
Willie recebe um dia a visita inesperada da jovem prima que vem de Budapeste.  Vem de longe, da Europa. E o que é para eles a Europa, a Hungria? Talvez o desejo de um regresso. 
Ezster Balint, num concerto

Eva (a violoncelista húngara Ezster Balint), a prima, passa por casa de Willie, e traz um burburinho, uma agitação: enche a casa. Tem ideias divertidas, nunca se aborrece.   Está  apenas de passagem, porque a velha tia Lottie - a quem vai fazer companhia durante uns tempos- foi operada e vai estar uma semana no hospital. 
John Lurie, pintor, e 'O esqueleto do armário foi ao quintal'

Primeiro Willie sente-se incomodado pela vinda de alguém que perturba os seus hábitos. Alguém que altera até o vazio da sua vida. Mostra-se indiferente, de início, responde por monossílabos, mas a verdade é que, depois de 10 dias  de convivência, os dois criam uma amizade. 

Eva tem vida, inventa "soluções" de almoços, "arranja" -não sabemos como- uma televisão e passam os dias divertidos a ver televisão, a jogar às cartas e a comer. Eddie aparece de vez em quando. Aquela miúda alegre e desinibida consegue agitar a vida deles no espaço de poucos dias.
Eva parte para tomar conta da tia Lottie e deixa, atrás, o rasto da alegria, e um pouco da sua loucura.  A vida torna-se ainda mais desinteressante para o nosso herói mais o seu amigo. 
Mas o tempo passa veloz. Um ano depois, Eddie e Willie, mais aborrecidos do que nunca, tendo ganhado muito dinheiro ao jogo (à batota), decidem ir visita Eva. Eddie tem um velho carro e partem para Filadélfia.
Perdidos pelas estradas, antes e depois de chegarem a Filadélfia, lá vão ter a casa da tia Lottie, onde ficam uns dias. 
Decidem ir à Florida com Eva. A Florida que sonharam com sol, e que estava estava gelada e com neve.
Viagem de loucos a destes três, sem meta, nem sentido. Vagueiam, divagando, filosofando sem falar, pelas praias, juntos e separados, como num ballet absurdo. Param num motel e aborrecem-se. Não encontram nada para fazer.

 Eddie, Eva e Willie

Há muita inconsciência neste deambular à procura de nada! Talvez à procura dum sítio que fosse o "seu" de cada um. Param a olhar o que foi – ou podia ter sido- e já não é. A imagem da longínqua Budapeste atrai-os. E não vou contar o resto claro...

 Filme de humor amargo e doce ao mesmo tempo.

No fundo são imigrados que nunca foram se não isso: Desadaptados. E que o serão sempre, aqui ou ali. Que nunca encontrarão o seu lugar inteiro, partidos entre duas vidas, entre mundos irreconciliáveis.

Será que os lugares que foram habitados um dia, poderão ainda encher-se de novo de sentido? 
Não creio. Mas ficamos presos às figuras  – e nós próprios à espera de qualquer coisa…
Como no Deserto dos Tártaros onde nada acontece nem acontecerá?

2 comentários:

  1. Um filme magnifico, feito com os restos da película de "O Estado das Coisas" de Wim Wenders e que permanece uma verdadeira pérola cinematográfica, de referir a fabulosa banda sonora de John Lurie tocada pelo Balanescu Quartet. Um dos meus filmes favoritos do Jim Jarmusch.
    Muito boa noite!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Bom dia, Mister Vertigo!Ainda bem que gostou! Poucas pessoas ouço falar(aqui) do filme. Impressionou-me há tantos anos. E John Lurie vai muito bem, para além da banda sonora!Também gostei d'"O estado das coisas" (filmado na Praia Grande, no Hotel Arribas), mas hoje custa-me vê-lo.

      Eliminar