sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Simone Veil: "Une vie". E Bergen Belsen e Dirk Bogarde



Sobre esta personalidade luminosa que teve uma vida invulgar muito se poderia ainda contar.
Recordo a auto-biografia que publicou em 2007, intitulada “Uma Vida” (“Une vie”, Editions Stock, Paris). Lendo-a, ficamos a conhecer esta mulher que não tinha medo de nada – desde que a sua consciência estivesse tranquila.

Da entrada no campo de Auschwitz até à saída preocupou-se com a mãe e a irmã e defendeu-as no que pôde. Talvez pela sua beleza e juventude e pela força de viver que dela se libertava, teve a protecção de uma das piores vigilantes (as “Kapôs”) do campo. Nunca percebeu a razão, mas a verdade é que por duas vezes lhe salvou a vida. Simone aceitou a protecção exigindo porém que a mãe e a irmã a acompanhassem. Assim, foram enviadas para uma fábrica em vez de ficarem em Auschwitz à espera de morrer. Comiam melhor (?) e tinham protecção. 
Talvez a "kapô" visse naquela adolescente, de aspecto saudável e ao mesmo tempo de olhar desafiador, a pureza e a vontade de viver, a continuidade de algo que, ali, estava destinado a morrer.
Há uma história incrível. À entrada do campo, como numa premonição do horror que iria encontrar, viu que às recém-chegadas tudo era tirado: casacos, malas, roupas, objectos. Ela e uma amiga, com os mesmos 16 anos incautos, que viajara do campo de Drancy com ela, pegam no frasco de perfume Lanvin que trazia na malinha e borrifam-se com perfume dos pés à cabeça. Como um desafio ao destino e às leis do campo.
Na apresentação do livro, à maneira de epígrafe, escreve: “Maupassant, Maupassant que eu amo, com certeza não se vai zangar comigo por lhe pedir emprestado o título de um dos seus mais belos romances, para descrever um percurso que nada deve à ficção.”
A sua vida teve muito que contar!
Simone Veil nasceu em Nice, em 13 de Julho de 1927, e morreu no passado dia 30 de Junho, em Paris. Filha do conceituado e premiado arquitecto André Jacob e de Yvonne Steinmetz, judeus franceses, que pertenciam a uma família da burguesia muito respeitada. Simone tem um irmão e uma irmã mais velhos do que ela.
 Yvonne Steinmetz e os filhos, crianças
No início do livro, lamenta: “Não posso deixar de pensar com tristeza que o meu pai e a minha mãe nunca conheceram a idade madura dos filhos, nem souberam do nascimento dos netos, nem tiveram a doçura de um círculo familiar aumentado.” (pg.)
Para Simone, tudo começa num dia de Setembro de  39: “Seria um sinal premonitório? As coisas desenrolaram-se assim: o anúncio da declaração de guerra, no dia 1 de Setembro de 1939, ficou estreitamente ligado na minha memória às férias interrompidas por uma doença diagnosticada tardiamente. (…) O Verão de 1939 acabava mal.”
Tratava-se de uma epidemia de escarlatina, mas a verdade é que o fim dessas férias foi o início de uma situação trágica.

Em 1940, a vida da família vai ser destruída: as perseguições movidas aos judeus depois da invasão da França pelos nazis, e a consequente República de Vichy.

Uma parte da família vai para Inglaterra e a separação do núcleo familiar, tios e primos, começa.

Vão para Nice, dali vão para Marselha, regressam a Nice. “Neste momento toda a gente perdia a cabeça, e o pânico que soprava em Paris não poupava as grandes cidades de província. Durante algumas semanas, o fenómeno do êxodo tinha uma amplidão louca”.

Ninguém é poupado. O pai, que combatera na I Guerra e se sentia “muito antigo combatente e patriota", é, com grade espanto seu, atingido pelo “estatuto de judeu”, decretado pelo governo de Vichy.
Escreve Simone Veil: “Os judeus passavam a ser objecto de segregação administrativa, perfeitamente escandalosa, no país dos direitos do homem.

Muitos dos professores de Simone são afastados do ensino e o pai perde o direito ao trabalho e alguns amigos arranjam-lhe pequenos trabalhos nem sempre pagos.
Nice, ocupada pelas tropas de Mussolini, em 1942, era, paradoxalmente, uma zona para a qual fugiam os judeus de França, tentando atingir a zona livre. E os italianos foram bastante “suaves” para com os judeus, comparados com os franceses, por exemplo.

Depois da queda de Mussolini, no Verão de 43, “quando os italianos assinam o armistício e deixam a região e a Gestapo desembarca em Nice, em 9 de Setembro de 43, que a tragédia chega.”

O pai e o irmão são os primeiros a ser deportados para o campo de concentração de Kaunas, na Lituânia, onde morrem em Maio de 1944. Kaunas que fora um gueto de 41 a 43 e nessa data transforma-se num campo de extermínio de judeus.
 judeus no campo de Kaunas

o castelo de Kaunas

Auschwitz, libertado pelo Exército russo (1945)


Simone, a mãe e a irmã, Madeleine, são levadas, em 1944, para o campo de Auschwitz-Birkenau e, depois, para Bergen-Belsen. 
desenho de Pavel Fantl, em Auschwitz

A outra irmã, Denise, entrara na Resistência francesa e não é apanhada. Mas não escapa, porque é presa pela Gestapo, torturada, e acaba por ir parar a Ravensbrück, libertada em 1945. Sobreviveu.
Denise Jacob
Ravensbrück, ruínas

a libertação de Bergen-Belsen 

Auschwitz, 2005, com Jacques Chirac
regresso a Auschwitz, em 2005

Por curiosidade, deixo a referência ao que o actor Dirk Bogarde (*) disse sobre a libertação de Bergen-Belsen a que assistira como oficial do Exército Britânico – e onde Simone Veil e a irmã estavam. A mãe morrera durante a epidemia de tifo que grassava ainda no campo. 
Russell Harty

Em 1986, Dick Bogarde (*), entrevistado por Russell Harty na televisão do Yorkshire, ITV, revela o que refiro sobre a libertação do campo.
Bergen-Belsen, libertado

De facto, Bogarde, oficial do Exército britânico, foi um dos primeiros oficiais Aliados que, em Abril de 1945, chegam ao campo de Bergen-Belsen, na Alemanha. Uma experiência que teve nele o mais profundo efeito e sobre a qual lhe foi sempre difícil de falar, muitos anos depois dos factos que presenciou terem acontecido. 


“No dia 13 de Abril, creio –pois não tenho a certeza de que data fosse (era de facto sim o dia 15). Quando ocupámos o campo e abrimos Belsen - que era o 1º campo de concentração que nós tínhamos visto e nem sabíamos o que eram. Tínhamos ouvido apenas rumores do que eram. Quero dizer que nunca nada podia ser pior do que aquilo. As portas foram abertas e foi como se pensasse que estava a olhar para o ‘Inferno’ de Dante. Quero dizer que nunca tinha visto nada tão aterrador. E nunca mais vi. 
os mortos de Bergen-Belsen
"Uma rapariga veio ter connosco e falava inglês porque viu os nossos distintivos e ela… bem, os seios dela eram como bolsas vazias e nada a cobri-los; trazia umas calças de pijama de homem, aqueles pijamas dos campos, e não tinha cabelo. Mas sabia que era uma rapariga por causa dos seios…vazios.”
Continua: 
Em redor de nós havia montanhas de gente morta, quero dizer montanhas deles e estavam enlameados e cheios de lodo e nós tentávamos passar no meio deles e um jovem polícia militar inglesa dizia: Venham, não vão aí pelo meio, eles estão todos com febre tifóide e vão contagiar-vos.
A jovem seguiu-nos até ao jeep e viu um resto de comida embrulhado num jornal e pediu se podia comer. O polícia disse que, se ela comesse naquele instante, morreria logo em dez minutos. Ela agarrou o jornal ao peito. Não via nenhum há 5 ou 8 anos. Deu-me um beijo comovente e o polícia afastou-nos, aterrorizado." 

"Muitos anos depois da guerra, eu sabia sempre que nada neste mundo poderia alguma vez ser tão mau…mas sabia que nada poderia jamais meter-me medo, nenhum homem poderia assustar-me nunca mais, nada poderia nunca ser tão mau como a guerra ou como as coisas que eu vi!”
Simone Veil


Simone Veil quis ser uma mulher independente e livre nas suas escolhas. Recordava a mãe como um exemplo. 

Contava: "Foi ela que me transmitiu o seu desejo de autonomia. A meus olhos -como aos seus- uma mulher que tem a possibilidade de o fazer deve seguir os seus estudos e trabalhar, mesmo que o marido a isso não seja favorável. É disso que depende a sua liberdade e independência". 

Por ela própria e pelos direitos das outras mulheres, lutou ela toda a vida. Como lutou -como pôde- nos campos de Auschwitz e Bergen-Belsen, tentando dar um pouco de dignidade ao horror dos campos.

Auschwitz, pintura de Moritz Muller

Hoje, Simone Veil repousa no Cemitério de Montparnasse à espera de ser trasladada para o Panthéon. Creio que é justo que o façam. Sofreu os horrores por ser judia, e, no entanto, toda a vida se considerou francesa e lutou pela justiça em França. 
Depois da ida a Auschwitz, em 2005, Simone Veil pensou que nunca mais deixaria de se sentir judia. E disse que no dia da sua morte pensaria decerto na Shoah.

O filho, Jean Veil, na cerimónia de despedida, nos Invalides, referiu-se à Shoah com estas palavras: “Tragédia indelével.” Sem dúvida, indelével!
"Esqueletos", Auschwitz, 1944, Felix Nussbaum

* * *

(*) Dirk Bogarde, ou melhor, Sir Derek Jules Gaspard Ulric Niven van den Bogaerde nasceu em Birmingham 28 de Março de 1921 e morreu em 8 de Maio de 1999. 
Súbdito inglês, esteve sob a bandeira inglesa na II Guerra, primeiro com 22 anos –antes de 1943 no Queen’s Royal Regiment e depois no Queen’s Regiment. Esteve no Pacífico e na Europa, especialmente nos serviços secretos.

No livro, “Spies in the Sky”, Taylor Downing fala também do trabalho de Bogarde como especialista de uma unidade do exército de reconhecimento fotográfico aéreo depois do D-Day. Como capitão e, depois, major serviu nas unidades da RCAF (RAF BOMBER COMMAND), que em Julho de 1944 estavam estacionadas em Sommervieu,  perto de Bayeux.


2 comentários:

  1. "O que não nos mata torna-nos mais fortes"!É isso.
    Bom finde

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  2. Muito interessante a leitura.
    Simone Weil era uma mulher linda e inteligente. Tenho livros dela para ler...

    Um beijinho e bom fim-de-semana:)

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