sábado, 30 de setembro de 2017

Reflectir...


Marc Chagall, Kippur

É o dia de reflexão hoje, dizem. Porque vamos ter eleições amanhã? É dia de reflexão, sempre, por muito optimistas que sejamos.
Dúvidas? Tenho-as sempre, felizmente. Sei que ninguém nasce ensinado e a saber tudo e aprender é o nosso melhor destino.
Arthur Nathan, O Abandonado

Hoje, dia do Yom Kippur, é um dia de reflexão para os judeus pelo mundo fora: o dia do “arrependimento”, da "expiação" - ou, melhor, da “consciência” do que se fez durante o ano que passou, da “interiorização” disso e do pensamento na expectativa do que virá. 
E de esperança de que possamos ainda “virar a página”, mudar a vida, e que  nos “seja permitido ter a assinatura no Livro da Vida por um ano mais.”
Marc Chagall, Judeu a rezar

É o dia em que, nas Sinagogas do mundo, se cantará o “kol nidrei” que assinala o fim do Yom Kippur, o dia do Grande Perdão. Ou da “compaixão”? que importa. 

É um exame de consciência mais do que tudo, para alguns que o queiram fazer. Para outros, é apenas uma festa da família depois do grande jejum que por alguns é respeitado também só pela tradição cultural. 
Nos anos em que vivi em Telavive ia ouvir o Kol Nidrei. Era impressionante o canto do hazan (o cantor), a tristeza do Kol Nidrei.
Era o lamento pelos mortos, a lembrança dos que desapareceram nos campos de concentração, desespero e esperança ao mesmo tempo.
Haveria quem lembrasse também os mortos da Guerra do Yom Kippur de 1973 quando Israel é invadido, nesse Dia do Jejum, por uma coligação de estados árabes, comandados pelo Egipto e a Síria. Quando Leonard Cohen foi cantar com os soldados.

 “Izkhor”, lembra!
Ali sentada a ouvir, lia o Salmo 33 que a minha amigo Susana Heffez, sobrevivente de Auschwitz, me dizia que, apesar de laica profunda, lia nesse dia.
 “Izkhor”, lembra! E às vezes dava-me para chorar pelos meus mortos.

Hoje, vou pensar nos meus amigos judeus que vão lamentar os seus mortos. Tantos mortos, tanta perseguição, tanto "pogrom", tanto sofrimento. Há tantos séculos!

Gmar Hatima Tova, haverim! Que o vosso nome seja escrito, por mais um ano, no Livro da Vida, amigos!

Ouvir o Kol Nidrei:

Francesco De Gregori e Lucio Dalla (1979) Ma come fanno i marinai

terça-feira, 26 de setembro de 2017

As camélias do Japão e o escritor Wenceslau de Moraes...



No livro de que já falei, “O Culto do Chá”, conta Wenceslau de Moraes lendas e coisas interessantes que desconhecia.
Do culto do chá já vos falei uma vez, mas não disse tudo. Porque esse culto implica, no Japão, uma cerimónia de grande requinte ligada à solenidade do momento. E dos ritos que a precedem, respeitados por todos os japoneses, trate-se de ricos ou de pobres.
Escreve o nosso escritor:
No espírito europeu, despoetizado pela chateza dos ideais da época, atribulado pelas multíplices exigências da vida, pervertido pela febre do negócio, não medram de há muito os cultos de nada…” (pg.7)
De que época fala Moraes? Parece falar da nossa - de hoje – tão agitada pela pressa, pelos negócios, pela corrida ao lucro, pela velocidade dos transportes, pela rapidez com que tudo acontece e os meios de comunicação transmitem na hora.  Mas não. Fala de um outro tempo, o século XIX…
Desse frenesim europeu, fugira o comandante da Marinha que foi Wenceslau de Moraes, o homem que amou acima de tudo o país do sol nascente, o Japão. Conhecera antes a China, onde viveu uns anos, no entanto é ao Japão que dedica o seu amor. 
O delicado Japão da cerimónia do chá, do culto da composição das flores, o ikebana.
"ikebana e chá"

O país da contemplação da beleza. Da delicadeza dos momentos que se vivem, nos romancistas japoneses, momentos sobre os quais escreveram Kawabata e Inoué: os passeios que se fazem, no Outono, de comboio, só para irem ver os aceres vermelhos; ou, no início da Primavera, a floração das cerejeiras, sakura
aceres vermelhos na zona de Kyoto

É também o país das camélias. “O Japão é a terra das camélias: da 'camellia japonica', como diz o latinório dos botânicos. 
camellia japonica

Quando, por fins de Novembro começam os frios e as geadas e pouco falta para as neves alvejarem no dorso das montanhas (…) é então que se ostentam as belas flores d'esta esplêndida família das camélias. 
Camélias "sazanquas"

Vêm primeiro as sazankas, umas brancas outras róseas, de mimosíssimas pétalas frisadas; seguem-se as camélias simples, sanguíneas, surdindo da rama espessa de árvores gigantes, espalhadas pelos campos; 
e após vêem as flores cuidadas, de luxo, variando em inúmeras formas, variando em inúmeros tons, desde o branco de leite até ao róseo quase negro.
camellia reticulata
 a flor do chá
É então que desabrocha também a pequenina flor do chá, que também é uma camélia, subtilmente perfumada, composta de cinco petalazinhas alvas contornando e protegendo o feixe áureo dos estames.” (pg.13)
"o feixe áureo dos estames"
Nas páginas que seguem, descreve a beleza dos campos verdes e das plantações de chá, da camellia sinensis que, tal indica o nome, veio da China (sinensis, da China).


Fala das casas de chá -restaurantes- que existem por toda a parte  e que se chamam “chayas” (casas de chá). Segundo o autor, estão perto do rio Uji, uma das mais belas regiões onde se cultiva esta planta do chá: a zona de Uji, “a quinze milhas de Kyoto”.

E deixo o pequeno poema que o Wenceslau de Moraes transcreve sobre a maravilha dos campos de chá de Uji perto donde corre o rio Uji.
 o Rio Uji

“Quando nasce o sol radioso
Por cima daquele oiteiro,
Todas as águas do rio
Parecem mesmo um braseiro.
N’estas águas do rio Uji
- tão milagrosas que são!-
Lavam-se todos os males
De que sofre o coração.”

E contarei mais história. A próxima vai ser “a lenda de O-Hichi e de O-Hana”, suicidas por amor, perto do rio Uji.


***
chá verde

Algumas curiosidades que considero importantes:
~A nossa palavra “chá” é, em quase todas as línguas europeias (*), a forma que difere das outras. Se repararmos, em inglês é “tea”, em francês “thé”, alemão “tee”, o italiano “tè”, o espanhol é “té”. 
Explica-se do seguinte modo a diferença: 

Deve-se ao facto de os portugueses terem sido dos primeiros povos a terem contacto com a forma como se dizia chá no chinês “mandarim”, enquanto os outros povos receberam a palavra através de outros meios.

As missões comerciais a Macau (já colónia portuguesa na China) precisavam de um nome para comerciar esse produto e, para simplificar, repetiram a palavra que ouviam dizer aos chineses, chai, do mandarim. 
A nossa palavra “chá” veio, pois, da mesma origem dialectal do termo em japonês. É a mesma palavra que se encontra no hindi, no persa, no romeno, no grego, no croata, no checo e no russo, turco, vietnamita e outros…

No entanto, a língua mandarim usava, igualmente, a palavra “tei” de outro dialecto que se falava na zona em que os ingleses comerciavam, em Fujian, no sudeste da China onde existia a forma que soava como “té” ou “tei” – daí o uso de “tea”. Termo que se usa, ainda, no dinamarquês, húngaro, finlandês e outros.

portugueses no Japão (biombos namban)

~Os primeiros a introduzir o chá na Europa foram os Portugueses que chegaram ao Japão em 1543. O chá usava-se, como “bebida social”, desde a época da dinastia Tang (618-907), na China, a qualquer hora do dia.
Catarina de Bragança, mulher de Charles II

O chá foi introduzido em Inglaterra por Catarina de Bragança, princesa portuguesa, mulher de Carlos II de Inglaterra, por volta de 1660. 
´

Foi ela quem criou as “tea parties”, à tarde (five o'clock tea), festas do chá, para mulheres: só mais tarde a cerimónia foi alargada aos homens.

Já agora outra curiosidade: a origem da palavra "bule" que, se estivermos com atenção, vemos que é muito diferente de todas as outras da Europa (théière, tea-pot, etc).
Vem, de facto, do malaio “buli” que queria dizer frasco, mais uma palavra que os portugueses trouxeram da Ásia. 

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A primeira separação


Lembro-me bem do dia em que tive de me separar da minha irmã mais velha. Devia eu ter cinco anos - e ela tinha um ano mais. Adoecera com tosse convulsa e, para eu não ser contagiada, o meu pai foi levar-me a casa de uma das tias da minha mãe, a tia Mariquinhas. 
A minha irmã ficou ao cimo das escadas, a ver-me partir. Queria descer, para vir ter comigo e gritava. Recordo o seu bibe branco, enfeitado com folhos nos ombros,e  a camisola vermelha de lã angorá, as botas curtas e as meias de renda até ao joelho. 
Eu olhava-a, e choramingava. Não a queria deixar, nem percebia a razão por que tinha ir embora da minha casa, quase de noite, de casa dos meus pais. O grande laço de fita escocesa, que me segurava os cabelos, caía desmanchado para um lado. Nem o casaco de lã  forte me aquecia.
Tinha sido um Inverno muito frio o desse ano. Lembro-me que, dias antes, debruçada à janela alta da nossa casa amarela, vira os meus pais irem para o cinema, ao velho Cine-Teatro maravilhoso, o tecto pintado de azul, pelo qual corriam figuras femininas cheias de grinaldas e de flores. 

Recordo as frisas e os camarotes forrados de veludo vermelho escuro e o rebordo suave do parapeito onde encostava a cara para espreitar a plateia e descobrir o meu avô, que me dizia adeus com a mão.

Eram os tempos da Florinda, inesquecível amiga que nos tratava como filhas - ela que nunca casara e tanto desejava ter uma família- fez de nós três as suas meninas. 
Mais tarde, já eu casada, foi para minha casa e tratou dos meus filhos que, também, nunca a esqueceram!
Nessa noite de Inverno, vira o meu pai abrir o guarda-chuva, muito grande, e nele pousarem devagarinho pequenos flocos brancos.
Magritte, Guarda-chuva

Flocos suaves que se desfaziam em gotas e escorregavam pela seda preta, até ao empedrado da rua que ficava brilhante e onde uma manchinha branca começava a formar-se. É a única recordação de neve da minha infância.
A noite em que o meu pai me levou era fria e a separação custou-me logo no primeiro momento em que olhei e o meu pai já lá não estava.
Havia três primas já crescidas naquela casa que sentia estranha, ao fundo da rua estreita, a Rua João Acciaoli, com casas bonitas. 
Ao fim da tarde, passava um burro com duas bilhas de latão cheias de leite. Habituei-me logo a correr à janela para o ver. Era uma novidade que me divertia. 
Outras vezes, ouvia, desinteressada, os cascos a escorregarem nas pedras redondas e polidas da calçada. Burrinhos de olhos doces como esses só os encontrei em Marrocos, na Medina de Fez.

Durante o dia inteiro, as minhas primas penteavam-me, faziam e desfaziam-me as tranças, punham-me laços, vestiam-me vestidos com golas engomadas, bordadas com pintinhas de todas as cores. Brincavam comigo, para me tirarem da tristeza em que ficara depois da partida. 
Pesava-me  a ausência da minha irmã, dos meus pais, e da pequenina que me olhara de olhos muito abertos quando me fora despedir dela.
Na casa, havia um gatinho que dormia ao fundo da minha cama numa almofada e a quem eu dava leite num biberon de bonecas: das bonecas de louça, com vestidos gastos e olhos de vidro parados. Havia também brinquedos de madeira que eram mesas e cadeiras minúsculas e armários pintados com flores de várias cores.
Os dias desenrolavam-se lentos e era à noite que eu mais pensava na minha casa onde sabia que o meu pai lia, debaixo do candeeiro de vidrinhos verdes e brancos.
E a minha irmã como estaria? Quando estava já na cama, lembrava-me de muitas coisas e ficava triste.
Não sei quanto tempo passou. Uma noite, tínhamos acabado de jantar há pouco, e ouvi a campainha da porta. Eu estava a brincar, fazia uma “cantareira” em cima do sofá, arrumando os tais brinquedos de madeira, que tinham brincado as minhas primas, em pequenas. Começava a ter muito sono.
A Mimi, que era a mais nova, foi abrir. Soaram uns passos rápidos no corredor. Aproximavam-se e eu conhecia-os bem! Virei-me  para  a entrada: era o meu pai, eu sabia! 
Lembro-me de lhe saltar ao pescoço e de o apertar com força com os meu braços pequenos. 
Saímos os dois sozinhos na noite. Eu, com o meu casaco felpudo e o meu barrete de lã vermelha, que se apertava por debaixo do queixo com uma fita, e as botas grossas e quentinhas de que tanto gostava. O meu pai trazia o sobretudo comprido que o fazia parecer ainda mais alto, o cachecol cinzento e umas luvas que recordo serem de pele amarela.
Sé de Portalegre (foto Mão de Ferro)

Atravessámos o largo da Sé, deserto àquela hora. Detrás da igreja, no alto, a lua brilhava encoberta por nuvens cinzentas que, pouco a pouco, se desvaneciam.

Sentia-me bem, com a mão pequenina na mão enorme do meu pai, a saltitar para poder acompanhar as suas largas passadas, feliz, por voltar a casa.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A Ruti, minha professora de hebraico, e a filha dela, Lilit......


Chamava-se Ruti a minha professora de hebraico. Ruti e não Ruth ou Rute. Aprendi, cedo, que a desinência final “i” de um substantivo indica a ideia do possessivo (“minha Ruth”, neste caso) ou o diminutivo que sempre seria afectivo, e de pertença...

A Ruti era alegre, inteligente e cheia de vida. Imaginava-a como uma kibbutznika, uma jovem mulher combativa e aventureira e competente em tudo, destemida. não sei exactamente qual foi o 'passado' dos seus antepassados e o dela própria. 
Sei que casou com um pianista russo de que se separara -ele vivia em Jerusalém e ela em Telavive. 
Reuven Rubin, Jerusalém

Contava-me ser ele um pouco “meshuga!” - Jerusalém é a cidade do síndroma de Jerusalém (*) e poucos lhe escapam. Deixara-lhe algumas tristes recordações mas igualmente – coisa maravilhosa! - uma filha que ela adorava e que era o seu encanto. Brilhavam-lhe os olhos escuros quando falava da Lilit. 
Também o nome de Lilit tinha um duplo significado pois pode ser a corujinha boa, símbolo de inteligência -mascote da deusa Atena na Grécia clássica.


A corujinha que "dá sorte", como aquela que me ofereceu a Susana, de cristal minúscula, quando nos viemos embora de Israel. A Susana que viveu dois anos no campo de Auschwitz e que, hoje, já não existe por este mundo.
 Lady Lilit, do pre-rafaelita Rossetti
Ou pode ser a diabinha Lilith, da Bíblia. Seria, quem sabe, uma deusa da Babilónia? 
Ou a própria serpente que entrega a maçã a Eva? Simbologia vária que não leva a lado nenhum, neste caso. A Lilit era uma menina sábia e infantil, cheia de sonhos!

E é da Lilit que quero também falar hoje. Da Ruti falarei depois. Tenho muitas recordações dessas minhas lições particulares, com uma chávena de chá ao lado.
- Põe mais água no chá, Mariale! Estás a poupar na água?, era uma das suas brincadeiras. 
Mariale é, afinal, o diminutivo de Maria, em Yiddish, o que prova que a Ruti era uma ashkenazi. Que viera da Europa Central e sabia o que era o yiddish.
A brincar eu chamava-lhe RuteleAinda hoje cá em casa há quem me chame "ima" (mãe, em hebraico) ou "imale", diminutivo yiddish de "ima"!
Pelos vistos, aprendi alguma coisa com a minha professora. Ela 'obrigava-me' a contar tudo o que se passara durante a semana, antes de ela vir. Em hebraico...
Lembro-me que, naqueles anos, andei a escrever o "meu" livro policial ("Olhos de Jade", inédito claro) e ela queria que eu lhe dissesse o que se estava a passar na história. E eu lá me "embrulhava" no vocabulário e no tempo dos verbos, mas conseguia dar a ideia geral - simplificada ao máximo!
Vi crescer a filha da Ruti, menina de olhos vivos, num rostozinho cheio de personalidade e uma alminha sensível de artista por detrás do olhar curioso. Cedo aprendeu a tocar piano e era um pequeno prodígio com os seus oito anos.
Quando me vim embora, continuei a “segui-las” de longe. A Lilit continuou a tocar piano, num estudo intensivo, a sério, enquanto se fazia uma bela adolescente e, depois, uma linda mulher.

Ser uma boa pianista  exige estudo, persistência, trabalho, sacrifício e não basta the gift, o dom – de que falava o Doutor Jivago no romance de Boris Pasternak.

Ao voltar a Israel, depois de sete anos de ausência, voltei a vê-la com a mãe. Encontrámo-nos num café da  Dizengoff – que antes fora o famoso Café Kassit

Chamava-se já de um outro modo que não recordo. Possivelmente, já nem esse nome novo terá pois em Telavive tudo passa tão depressa que "o presente em Israel é logo passado", como dizia o meu querido amigo Inácio Steinhardt! 
o Café Segafredo (MJF)
O Kassit era o café onde de início nos encontrávamos com os amigos - do qual não guardei fotografias. Depois, foi o Café Segafredo e ao mesmo tempo o Dizza  que ficava já na rehov Frishman, quase na esquina com a DizzengoffPara quem não saiba, "rehov" quer dizer "rua". 
Café-Restaurante Keton

Havia ainda, na Dizengoff, o Restaurante Keton onde íamos buscar à sexta-feira o "tchulent im kishka" - o prato típico do shabat dos judeus ashkenazi - que era um prato delicioso! 



o Café Segafredo (MJF)
A Ruti veio visitar-me há uns quatro anos! Andou por Lisboa e gostou. Estivemos uma tarde no Café Nicola. Ela veio a nossa casa, com o Fried, e depois passeámos de carro até ao Guincho, à Praia do Magoito


Foi maravilhoso voltar a falar de tantas coisas que nos eram comuns. tantas recordações, tantos momentos vividos, tantas saudades. 
(E de repente tive saudades da 'cultura dos cafés' que existia em Telavive e, sobretudo,  na zona privilegiada da rehov Dizzengoff, cheia de cafés, ao ponto de existir na gíria de Telavive o verbo “to dizzengoff” : ir  tomar um café e conversar com os amigos na Dizzengoff…)
A vida é feita de laços que se criam e se perdem porque a vida é efémera e há sombras que passam mais depressa do que as outras e ficam memórias na nossa vida. Todos sombras somos, na passagem pela vida. 
Telavive é o local da memória. A meio da nossa rua, havia um jardim no Centro do Ulpan Gordon, com estátuas, figuras estilizadas de mortos, e uma frase "Memories are shadows", nunca esquecer a memória!
Mas eu queria era falar do que é luminoso na vida e a Lilit era e é luminosa!  Sei que abandonou a carreira de pianista. Vieram os dois anos de serviço militar, vieram outras experiências, vivências nunca fáceis em Israel.

Ser pianista era para a vida inteira e teria de sacrificar muitas coisas, entre elas os amigos que criara, que viviam agora dentro da sua vida, os que tinham estado com ela nos tempos duros da tropa, do medo, e da ansiedade. 
Sabia que queria ser pianista e ser a melhor -dentro do que era capaz. 
Berthe Morisot, Le piano

Sentia, porém, que "não queria ser capaz" de cortar com o que aprendera na sua curta vida: jovem e desejosa de viver intensamente; de seguir por outra estrada cheia de gente como ela; ir a festas, conviver, amar alguém; viajar ao estrangeiro para esquecer a pressão que se vive em Israel. 

Percebera que a vida não era dada, era difícil, era uma conquista e que a juventude não durava para sempre: vira morrer muita gente jovem como ela, outros ficarem estropiados. Sabia que bastava um tiro, uma bomba, um atentado para tudo acabar naquele momento. Acabados os dias de sol na praia, as corridas de bicicleta, as idas à discoteca. 
Não, ela não queria ficar fechada numa sala com um piano, a tocar, a estudar, a dominar  -e a exercer- o melhor possível uma técnica que a “fechava” fora da vida exterior, noutro mundo.
Era uma escolha decisiva e fê-la. Se tinha de ser uma boa pianista – a melhor! – e, ao mesmo tempo, não poder viver a vida intensamente, então preferia abandonar. Matriculou-se num curso vulgar, com certeza mais fácil e menos interessante que lhe permitia viver como queria, no momento presente, livre e despreocupada.
esboço de Berthe Morisot, Piano

“Talvez me arrependa de o ter feito, mas agora quero apenas viver o meu instante de vida – a minha oportunidade, a plenitude!”

Ria-se enquanto falava. A Ruti olhava-a com os olhos a brilhar como acontecia sempre que estava ao pé  dela. Estava de acordo? Não estava? Não queria interferir numa escolha decisiva.
A Promenade vista do Café Panorama (Gui Poppe)
Tudo é rápido e decisivo, em Israel, porque tudo é ainda mais efémero do que nos outros lugares do mundo. 
A vida passa como uma sombra ligeira, uma brisa fresca, ao pôr do sol, que de repente acaba. A vida que é  a nossa “oportunidade cósmica”, como alguém disse.
Um dia posso voltar a tocar piano outra vez. Retomar as lições no Conservatório, estudar, trabalhar. E tocar, tocar para ser a melhor.”
Ouvia-a e pensava nas minhas duas amigas. A vida passa como um sonho. Acaba como o sonho que finda ao acordarmos. O sonho bom ou o pesadelo. Mas sempre é o fim.
A tarde caía, na esplanada da Dizzengoff. Os carros e os sherutim passavam, era a agitação normal de Telavive, a cidade sem repouso, e que continuaria pela noite fora. 
rehov Lassallenº4 (Gui Poppe)
Era bom estarmos a conversar. Desta vez não ia voltar para a casa da rehov Lassalle, onde vivera cinco anos e onde a Ruti me dera lições de hebraico e onde ainda estava o nosso nome na escrito na campainha da porta de entrada. Esse tempo tinha acabado.
a minha rua, rehov Lassalle
O tempo da vida é o de uma chuvada de Inverno, como escreveu Matsuo Bashô (citando Sôji):
“A vida demora tanto
como um aguaceiro de Inverno
diz Sôji.”
Esse aguaceiro de Inverno é o tempo que nos foi concedido. Não temos outro. E é bom senti-lo passar por nós, e molharmo-nos com ele.
Amanhã é dia de Rosh-Ha-Shana, o novo ano hebraico! Coisas doces, mel e maçãs, e os bagos de romã que representam a riqueza da terra.

E desejo: "Shana Tova", amigos! "Be shana aba a be Yerushalaim!"

Bom Ano Novo, Ruti e Lilit! Bom ano novo, meus amigos de Israel! E bom ano a todos os amigos!
(*) "Sídrome de Jerusalém": "Síndrome de Jerusalém é o nome dado a fenómenos mentais que acontecem em Jerusalém : ideias obsessivas de temática religiosa, delírios ou outras experiências de cunho psicótico que podem desencadear-se numa visita  a esta cidade, e que acontecem tanto a judeus como a cristãos. Passa depois de algumas semanas ou após afastamento do local". (wikipedia)

(*) O "tchulent" ou "cholent" "é um guisado com feijões, trigo, grão, carne, batatas e uns enchidos - que se chamavam "kishke"- feitos no momento com carne de vaca picada, enrolados em tripa de galinha. O prato ia cozendo toda a noite, em lume brando, por vezes mesmo nas brasas, e estava pronto para a refeição do shabat -dia em que se respeitava o sossego absoluto." (wikipedia)
*****
Receita de Cholent

2 1/4 pounds roast beef ( cow meat with bone in, sealed in saucepan ) 
5 cups potatoes ( 10 small, unpeeled ) 
10 eggs
2 cups onions ( sliced into 4 ) 
1 Can (6 oz) tomato paste ( concentrate of tomatoe ) 
2 tablespoons honey
to taste salt
to taste black pepper
to taste paprika

Combine all in large pot. Fill with water. Boil 10 minutes and then set in the oven on minimum temperature or in an electric grill for 18 hours. No kidding, don't cheat on that. Trust me, it is a complete different dish