quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Ainda Agustina Bessa-Luís e "Um bicho da terra"

***
E continuo com a triste e bela aventura de Uriel da Costa de que Agustina soube tão bem falar. Voltando um pouco atrás...

Entre 1600 e 1608, Gabriel da Costa estudara, intermitentemente, em Coimbra, Direito Canónico e começara a leitura da Bíblia e interessara-se, seriamente por esse estudo. Quando o pai morre, volta ao Porto e, em 1609, ocupava já o lugar eclesiástico de Tesoureiro da Colegiada de S. Martinho da Cedofeita.

Na sua auto-biografia, fala da família como cristãos devotos. A Inquisição, porém, submete-os a investigações severas sugerindo que eram conversos, mais ou menos próximos das tradições judaicas.
Real Colégio das Artes

Desde jovem estudante, no Real Colégio das Artes, em Coimbra - fechado no quarto das meditações-  “as dúvidas que o atormentavam eram muito inferiores ao desejo de situar o homem na sua verdadeira dignidade. A sua ambição intelectual estava centrada na explicação do que é justo e injusto, na sintetização da filosofia do erro. O estado natural e o estado social do homem eram o motivo principal das suas meditações, desde o princípio da sua querela com os doutores (…)". 
 Real Colégio das Artes, Claustro

Agustina pensa que Gabriel (Uriel)da Costa era um espírito superior e que, em relação aos seus adversários, "existiu uma desigualdade de mérito e sensibilidade e o génio de Gabriel ultrapassavam em muito as condições mentais dos que se propuseram ser seus adversários.” 


Lamenta não se poder avaliar melhor essa superioridade intelectual de Uriel da Costa por não existir nada de certo: “(...) todos os seus escritos foram destruídos e até porque o seu último documento, o ‘Exemplar Humanae vitae’, é provavelmente uma falsificação, não é possível avaliar a superioridade do seu espírito.”
 estátua de Maimónides, em Córdova

Seguindo o código de Maimónides, Uriel abrigou-se no espírito de que é preciso conceber o mundo como suspenso entre destruição e construção, que tudo depende das acções do homem, do equilíbrio entre o bem e o mal. (…) Uriel, conforme o pensamento moderno do judaísmo, adoraria a Deus na consciência da razão absoluta que não exclui o ateísmo." (1)

Por outro lado, definir a carreira espiritual de Gabriel da Costa como uma passagem cripto-judaica, depois judeu-rabínica e por fim saduceísta (2) é, para ela, inacreditável. E explica: Na verdade ele nunca fora exemplarmente um cristão, e muito menos um judeu converso.”
Um místico? Com um enorme desejo de martírio? Um homem em meditação constante?
Rembrandt, Auto-retrato quando jovem

 “O quarto das meditações, que em Coimbra fora uma espécie de sepultura antecipada em que a alma consolida a sua agonia, levou-o Gabriel para Amesterdão. Numa salinha do primeiro andar, para onde se subia por uma escada de caracol (vide quadro de Rembrandt de 1632, hoje no Louvre) ele deixava cair o pensamento nos mesmos terríveis deleites que tinham sido já motivo de horror e desejo nunca saciado.
Rembrandt, Auto-retrato (162)
 Porque nada mais o atraía do que abeirar-se do medo, com passo furtivo, e deixar cair a máscara de tão atrozes apetites, como era ver-se a arder em fogo, derreter em carvões acesos, ir consumindo as carnes por efeito de tremendos tormentos. Já tormentos não eram mas um abusar da fraqueza humana (…)” pg. 135.
Agora, em Amesterdão e Hamburgo, de judeu converso, ou cristão novo, como era considerado, tem de se reconverter ao judaísmo dos seus antepassados.
O seu quarto das meditações, em Amesterdão, é de novo o que fora em Coimbra: o esconderijo, o lugar para se desvendar e se recompor. 
Em Coimbra, criança, saía dali “tremendo, quase a cambalear das suas visões (…) e era ainda um ponto onde ele todo se ia abrigar.”
Rembrandt, Criança

Quando pensava nos suplícios que inventava e em que se deliciava nesses tempos, “sabia agora o que aquilo significava. Ele amava ser destruído, como se ama um retorno implacável ao seio de origem. Se tinha que atravessar caminhos de deserto, com os pés em sangue; se tinha que assistir à sua própria decomposição, ao seu próprio exame de anatomia (…) ele tudo permitia, tudo amava, porque o esperava o grande ventre da beatitude, onde tudo volta a ser água e densa combinação de génio e perdão (…). Livre, sem sentimentos, lágrimas, prazeres, sem alma."
***
Em Amesterdão, de judeu converso, ou cristão novo, como era chamado, tem de se reconverter ao judaísmo. Não parece simples.
Passava muito tempo no quarto das meditações, “agora uma imitação do que fora.”
os Inquisidores

Falando dos “medrosos esbirros, os denunciantes” que bajulavam os inquisidores, diz: “não são os nossos inimigos, são um jogo de rupturas (…) estão amarrados ao tema da fascinação e não da coerência. Basta um olhar, quase um sopro de olhar, que não se entende, não tem nome, e eles desejam esmagar-te, pisar-te, até que não fique um vestígio de ti (…). Em nome da alma, em nome dessa coisa sem reciprocidade e sem calor, que era a alma, eles abrasavam-se de furor.”

Uriel da Costa contestava a imortalidade da alma. E Agustina escreve:
“A alma era uma iguaria rara que o homem introduzia na sua pele para se proclamar eterno. E se não era eterno? Se morria, como uma folha de castanheiro sobre um lago, primeiro girando como um barco desgovernado, depois apodrecendo e indo juntar-se ao limo da profundidade? Então tantas vigílias gastas em vão, tantos pavores mal empregados.” (pg. 137)

Escreve Agustina: “Uriel adoraria Deus na consciência da razão absoluta que não exclui o ateísmo.”
Na morte dum sobrinho, criança linda, sentiu um “desespero confuso apoderar-se dele” e percebeu que os homens podiam aproximar-se através duma dor, dum sofrimento comum, experimentado pela “comunidade das pessoas”.
Como ensinava Maimónides: "é preciso conceber o mundo como suspenso entre destruição e construção, que tudo depende das acções do homem, do equilíbrio entre o bem e o mal."
Somos responsáveis, portanto. Há o bem e há o mal. Podemos agir. Podemos aproximar-nos, pelas nossas acções, ou afastarmo-nos. 
Percebeu que “(...) a dor é um património espiritual que aproxima todos os povos e todos os elementos dum povo. Compreendeu que era mais importante o sofrimento do que uma pátria.” (pg.188)

A Dor pode unir. É um património comum. Descobre “a filosofia do amor.”

Recordo o belo gesto de Branca, mãe de Gabriel, quando Francisca, a mulher de Uriel, morre. Ao despi-la, encontra, escondida dentro da camisa,  uma cruz pequenina de madeira, embrulhada num paninho.
Rembrandt, Lutetia

Francisca, "cristã-nova" em Portugal, reconvertida ao judaísmo, em Amesterdão, guardara a sua “velha” fé de cristã-nova
Branca -que a recebera e amara como filha – deixou-lhe a cruz junto do coração, por respeito, “honrando assim a liberdade de pensamento sem a qual o regresso não é possível.”


"Dedico-me à utopia dum programa"...

Agustina põe na boca de Uriel da Costa:

 Eu próprio amo a tragédia, é inevitável que eu a ame. Dedico-me à utopia dum programa, ao irrealismo do método, com esse amor da tragédia que está no prólogo de todas as coisas. O apetite da vida é o apetite devorador para a tragédia.”

Talvez amasse acima de tudo a sua condição trágica de homem?
"Essa condição trágica é o sustento do seu afecto pelo mundo; se não fosse pensador da tragédia, nunca seria sequer um homem livre." (pg. 148) 

Agustina, citada por Fátima Marinho (3), afirma: ‘Para Uriel da Costa como para Baruch Spinoza, o judeu tinha de ser uma tragédia privilegiada, a da dispersão como criação.”

Baruch Spinoza (1632-1677)

Para desgosto de muitos, o judeu português Espinosa foi o prosélito de Uriel e não dos seus detractores. Muito mais jovem, admirava a figura e os textos de Uriel.
O seu vocabulário não diferia em nada do de Uriel e traduzia em latim as palavras usadas por este. Para ambos Deus não tinha nada que ver com o Deus das pessoas supersticiosas e amedrontadas pela identidade justiceira de um pai poderoso. 
Era uma formidável noção filosófica e não menos divina por isso (...) ” (pg 305)
Rembrandt, o Arcanjo Gabriel

 A inteligência era o amor filosófico de Deus. Deus? Que Deus? Ele queria um Deus que não metesse medo, que não pesasse nos ombros dos homens. “A filosofia do amor”?
“O que me irrita em vocês todos é a necessidade de um pai espantosamente outro, a quem não se pode perdoar ser outro e não nós”. Escreve Agustina Bessa-Luís: Aderir a uma teologia ou a um ateísmo parecia-lhe igual esperança e boa fé.”

Uriel da Costa dizia:
Eu luto pela verdade e, antes de tudo, pela liberdade inata aos homens, que deveriam desembaraçar-se das falsas superstições e dos ritos mais vãos e levar uma vida não indigna da sua qualidade de homens.” (pg.199)
Liberdade (imagem da net)

Luta pela dignidade, pela liberdade, pelo bem contra o mal, pela justiça contra a injustiça, pela Utopia. Demasiado arrojado antecipador, pré-iluminista:
 Rembrandt O Filósofo em Meditação, 1632

“Eu luto pela verdade e, antes de tudo, pela liberdade inata aos homens."

Amesterdão era considerada uma cidade livre. Descartes disse da Holanda: “Haverá país onde se logre mais liberdade?

No entanto, é em Amesterdão, nessa cidade "livre", que Uriel da Costa - e, anos mais tarde,-Espinosa, acusados os dois de ‘ideias racionalistas sobre Deus’, foram banidos, amaldiçoados e separados da comunidade, numa maldição, dita com termos terríveis.
 “Maldito él en su entrar. Maldito él en su salir. Maldito él en la ciudad. Maldito él en el campo (…).” Não eram os rabinos que agiam directamente nas excomunhões, eram os administradores laicos das Congregações.
Afastado da sua comunidade, Uriel da Costa “arrepende-se”. Está velho e cansado. Mas Uriel não podia submeter-se a nenhuma religião, ele era fundamentalmente livre. 
“Ele tudo permitia, tudo amava, porque o esperava o grande ventre da beatitude, onde tudo volta a ser água e densa combinação de génio e perdão (…). Livre, sem sentimentos, lágrimas, prazeres, sem alma.”
Depressa, volta a teimar na sua liberdade. Revolta-se. Condenado e humilhado, agora na Sinagoga, pensa:
Anjo de El Greco, Enterro do Conde de Orgaz

Consumara a obediência e via que tudo estava ali, tudo o que se aprende na terra e ele sabia antes de ter chegado ali.”
Quando o irmão o vai visitar, depois, em casa, encontra-o agitado mas não sofredor.
A inteligência conhece-se no inteligível”, disse-lhe Uriel. E, segundo Agustina, ele teria pensado: “É possível invocar a Deus de maneira insincera.”
 “Haverá outra?” - pergunta Agustina.

No seu quarto, as dúvidas “eram muito inferiores ao desejo de situar o homem na sua verdadeira dignidade. A sua ambição intelectual estava centrada na explicação do que é justo e injusto (…).”

Poucos dias depois, Uriel da Costa suicida-se com um tiro na cabeça. 
Ele, o “bicho da terra tão pequeno”, estava cansado das perseguições dos homens e da indiferença dos deuses.
Marc Chagall, O judeu 

 “O judeu tinha de ser uma tragédia privilegiada, a da dispersão como criação.” (pg. 306)
Uriel talvez estivesse tranquilo “porque o esperava o grande ventre da beatitude, onde tudo volta a ser água e densa combinação de génio e perdão”.
Talvez como neste quadro de Salomon Konnick, "Filósofo a pensar",  meditasse quanto tudo era inútil.
O livro termina com a descrição da morte do filósofo, encontrado por Ancilla, a criada, que ouve o tiro e vem a correr. “Chegou a tempo de o amparar no regaço, sem surpresa nem medo”. Ela, que o amparara sempre, sente-se aliviada quase - pelo seu sofrimento que conhecia bem. Olhou e pareceu-lhe ver um sorriso de ironia nos seus lábios dele.
Recolheu o último olhar de Uriel, uma luz que foi abrigar-se na boca, como um beijo, e lá ficou morando na forma dum sorriso leve, de ironia.”
Ancilla pensou: Era o que ele tanto queria”. 

Livre. Enfim.
E penso na frase que acima referi de Agustina sobre Uriel - e não estaria ela a pensar em si própria? "Livre, sem sentimentos, lágrimas, prazeres, sem alma."
“Sim era um riso de ironia”, conclui Agustina.


(1) Saduceus: seita judaica que não acreditava na imortalidade da alma.

(2) Moises Maimónides nasceu em Córdoba, em 30 de Março de 1135 ou 37/38- e morre no Cairo, Egipto,  em 13 de Dezembro de 1204. Foi enterrado em Tiberíades, Israel. Filósofo, religiosos, codificador rabínico e médico. Viveu em El-Andaluz até ter de fugir para Fez e daí para o Egipto.

3) Fátima Martinho é professora na Universidade do Porto . 
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3020.pdf

Links sobre Uriel da Costa e o livros de Agustina Bessa-Luís:


segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Um livro a ler: “Morri”, de António Falcão…


“Se existir um deus, é o Tempo”

O livro de António Falcão, “MORRI”, consta de mais de 60 textos. Saiu em Macau, durante as 'Comemorações dos 150 anos de Camilo Pessanha', em Setembro passado. 
Escrito entre  2004 e 2017, muitos dos textos recolhidos foram publicados nos anos de Macau, onde viveu cerca de 17 anos. Crónicas, artigos, evocações, figuras, momentos salvos ao Tempo. 
Sente-se uma voz verdadeira, de alguém que procura um sentido para a vida enquanto vive. Mas…e se morrermos várias vezes?

Tem tudo a ver com o tempo - diz numa entrevista ao jornal no jornal "Hoje Macau". Se existir um deus, é o tempo. É a única omnipresença que existe no mundo e da qual fazemos parte.” (1)
E continua:
“’Morri’ foi o título que me apareceu. Comecei a escrever para o 'Hoje Macau' (em 2004), numa altura da minha vida em que tinha uma necessidade da escrita para que pudesse continuar a viver ou a ficar perto do chão. Escrevia com o nome de Ring Joid. Acabei por inventar essa personagem. 
Há sempre duas coisas a viver em mim. É como se andasse com uma companhia. Um puxa para o desvio, para ir por outros caminhos mais longos e mais difíceis.  Depois há as histórias ao longo do livro que têm o carácter de morte.»

Morre-se muitas vezes. Quando tudo morre e desaparecem os nossos momentos de uma vida vivida que, sabemos, não voltam mais - isso é como se morrêssemos. Pode-se viver outra vez?
Quantas vezes morri? E eu imagino, por mim: "quando morrer como será? Para trás fica tudo o que vivi e me fez bater o coração."
Porque “MORRI” é também uma história do coração. De quem que viveu com o coração. 
E com a imaginação de alguém que sonhou que viu a vida toda diante dele um dia.
Durante uma infinidade de tempo permanecemos estáticos. É uma transparência com uma imagem que se acende e apaga, que começa a baloiçar até chegar às traseiras da nossa retina para nunca mais de lá sair. Uma violência para a percepção humana (...)" ( pg. 9)
Como uma máquina fotográfica do tempo? Película não impressa que pode ter várias cores diversas. Ou não ter. Ser apenas a branco e preto. O autor interessou-se muito cedo pela fotografia, fotografando e revelando e trabalhando as fotografias.
António Falcão, em Macau
Morri já? E o coração começa a bater de novo e a recordar (recordar, etimologicamente, é “trazer ao coração”). Ou, como no filme “Amarcord”, de Fellini, recordar com amargura e melancolia. Como num sonho. Real. Sempre. De novo. O coração bate sempre.
Amarcord” de Fellini e o barco na noite
Quando se vive pelo coração, há pedaços que ficam por aqui por ali, farrapos de pessoas, coisas e pessoas, momentos.
Ode a tudo” é um texto belíssimo. Uma doce recordação amarga. Um pretexto para trazer ao coração histórias vividas na infância, misturadas com uma espécie de sonho, sob um luar verdadeiro contemplado, num telhado, durante uma noite inteira. 
Há locais onde tudo é possível porque a criança tem tudo à frente. A vida passa-lhe diante dos olhos. "A Lua o dia todo a fazer-nos ver de outro modo". Abstracção num mundo irreal tão forte. Um teatro em que as luzes se apagaram. 
Quando saímos nunca mais fomos os mesmos (pg.68). A cidade nunca mais foi a mesma. Amainou congelada naquele Verão quente. Lembras-te das groselhas? Já não existem. As borboletas? Raramente lá vão e são todas da mesma cor. Não há cães nem gatos, nem outros animais. Apenas erva a crescer em desatino. A deixar-se daninha.”

O tempo perdido, em que tudo era uma aventura, mesmo quando acabava mal. “Cores proibidas” é um pequeno texto cheio de força, lembrança duma amizade. Que o vai conduzir a Macau.
fotografia de António Falcão

Tudo o que dissemos foi feito. Tudo o que afirmámos foi verdadeiro. Não foi preciso sangue nem pacto. Foi simples. Toda a verdade foi termos vindo. Decididos ao que quer que fosse. À aventura dos descobrimentos, o tesouro escondido, o barco dos piratas. O dragão cintilante ou qualquer coisa do género. Foi um tufão que nos deu e ninguém acreditou!"

“Apesar do companheiro de aventura ter ido, a verdade é que cá vou ficando. Para sempre? Não, só um pouco mais." (pg.20)

Macau. Como vim parar a esta terra? O imediato dessa decisão no limiar dum momento que arrastou toda uma vida para um destino ignorado. E recorda a decisão: "Noite escura. A iluminar-se. De repente. Na figura duma cor proibida."
O maior amigo, um encontro uma noite, fotografias a branco e preto, numa caixa cheia de mofo. Um rio, uma baía. Pessoas. E lá fora um trovão que os acorda dum semi-desinteresse. Sem aviso, um relâmpago. "A noite continuou. (...) E, num ápice a vontade de mudar de vida. De deitar tudo ao ar (...). Uma implosão da alma. (...)Era a vidinha que me segurava e que eu queria cuspir." (pg. 19)
E "cuspiu" a vidinha, fugindo. "Uma fuga. Para a frente."
Macau.
E a sensação de estar a sonhar: "cheiros, sabores, o fuso. Acordar nessa fantasia e viver nela, sem escape.(...) Não o via claramente, é certo (…) mas era isso. Um sonhar acordado, cheio de coisas vividas ainda por viver.”

O que é a realidade? “Onde estive?”, interroga-se o narrador, quando volta. Onde estou? Por que estou aqui? Ou, mesmo, “quem sou eu? Qual deles?” Porque lhe acontece sentir-se “outros”.

Passamos pela vida. Em transe. E há coisas por viver. E há o sonho.
Escreve: “O transeunte é um fingidor, já se dizia, porque normalmente vai em transe.” (pg.16)

E este que anda comigo quem é?” Porque há o “outro” sempre, o que contraria as nossa decisões, nos leva a fazer o que não queremos, o nosso “duplo” claro. O Outro, o Duplo, as Personagens que nos vivem cá dentro. 
"Sempre e só eu. Sozinho e com todos cá dentro. Tantos outros cá dentro”, diz o autor: King Joid, LIME, PURPLE Latvia
E quem mais? Muitas vidas.

“King Joid é um nome aleatório é o que ideal de mim que não consigo representar na vida real. E por isso mantenho-o vivo artificialmente como um complemento de uma vida com limites. Ele sou eu à solta”.

Os dias correm sempre iguais, nesta terra, e Latvia sente saudades de casa. Do tempo de pré-adolescente. Saudades de abrir a mesa da cozinha onde jantava com a família. Os irmãos em redor. A mesa onde ouvia o pai falar. O pai numa ponta junto às janelas. Um espaço onde mal cabia;, o irmão mais velho, Josef, à direita, a mãe à esquerda, a bloquear a porta da despensa. A mesa da cozinha que nas horas vagas também servia de mesa de 'ping-pong'. 
Que também servia para estudar. Para pôr o rádio e ouvir música. Em cassetes. O tampo rectangular arredondado nos cantos, onde as bolas tocavam de raspão e se estatelavam na porta do frigorífico. Havia sempre alguma coisa para ir buscar à despensa. E a porta abria-se uma polegada, o suficiente para Latvia enfiar o seu fino braço e retirar o que lhe pediam. O vinho para a viagem. Batatas, uma mão cheia de alhos, a paprika.” (pg. 192).
Ou noutra vida, num mundo à ‘Blade Runner’: “Eu sou o último dos Replicants (2), a peça restante de uma colecção numerada, os Nexus 6. Somos virtualmente idênticos aos seres humanos (…) fomos concebidos para durar pouco. Quatro anos no máximo. Roy foi o último a partir. É dele que me prolongo. Perdido nesta imortalidade que me habita." 
Roy que vivia nos intervalos entre os "fugazes momentos." 

Roy é Roy Batty, um Replicant. Costumava dizer-lhe: “é o momento para fazer, só pode ser agora. Só podemos viver neste instante que passa. Aqui. Já. Sempre. E tentava explicar-me. Tentava demonstrar como o tempo, quando controlado, se torna vasto. Se torna ilimitado. (…) Não há, eu sei. Não há. É por saber que não há, sei que tudo o que existe é inexistente. E o que é inexistente é absoluto e preenche o universo inteiro.” Um mundo "de onde não há saída.” (pg.171) 

Replicants? Andróides? Semi-humanos? Imortais? Um pouco de antecipação científica já que um dos géneros de ficção que leu era ficção científica.

O tempo de vida, o tal sopro em que são arrastadas as folhas mortas da vida, é curto. Podem ser quatro anos apenas. Podem ser mais. É limitado, porém.

Tempo “é o único deus se deus existir”? Mas o Tempo é inexistente! 
O único tempo que temos é o do absoluto que – esse- preenche o universo inteiro. O tempo roubado ao Tempo? ...
fotografia de A. F. "KleptoKronos"

É um primeiro livro com muita coisa dentro. É uma procura, um mergulhar dentro de si para trazer pedaços de coisas, farrapos do coração.
Que dizer mais? Leiam, vão gostar.

      (1)  Nota auto-biográfica:
“António Falcão nasceu em Lisboa e viveu 17 anos em Macau. Foi fotógrafo. Teve uma livraria. Escreveu. Regressado a Portugal, rejeitou a densidade urbana e ancorou numa vilória da costa alentejana, por isso, também na Lua. Como sempre.”
(2) Replicants: https://en.wikipedia.org/wiki/Replicant
(3) "MORRI", edições COD, Setembro 2017, Macau

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Regresso de Trieste! Já cá estou, amigos!



Uma viagem demasiado longa? Sim, sem dúvida! Que meteu aviões, comboios de Veneza a Trieste e de Trieste a Veneza, autocarros e tantos passeios a pé! 

Chegámos tarde a casa e muito cansados.

-Finalmente em casa!, disse o Ratinho, suspirando, já a descansar em cima da minha cama com o Ouricinho e a Gatinha japonesa.
- Mas não gostaste da viagem? 
(Sim, desta vez levei-os...)
O Ouricinho parecia chocado com aquele desabafo do Ratinho. 
- Adorei! O facto de ter vontade de chegar a casa não impede que se tenha gostado do passeio, não achas?
- Conversa! Tu gostas é de estar metido em casa com os teus livros. A ler e a fazer versos…Hihihi.
E continuou, irónico:
- Com os teus pensamentos que são o teu “rebanho”, como escreveu o outro poeta. Eu cá gostei de ver coisas tão diferentes do que há aqui!
- Eu também gostei, claro. E Trieste não é como Roma. São muito diferentes, concordo.
O Ratinho tinha agora um ar compenetrado. Sim, eles já estiveram em Roma. Podem comparar.
- Nada comparável, tens razão. O golfo, as meninas que cosem as bandeiras italianas, o barco grande que veio todo iluminado.

O Ratinho olhava em frente, sonhador, como se recordasse todas aquelas mil luzinhas a brilharem na noite escura. Eu ia desfazendo as malas, as malditas  “maletas” que são o meu pesadelo nas viagens.
O Ouricinho disse, entusiasmado:
- Pois foi! Tão engraçado o barco dentro da noite mesmo quase a querer entrar pela janela! Lembras-te?
O Ratinho, fazendo-se importante, um pouco “snob” e com um ar svagato, ausente, respondeu:
- O problema é que essas naves vêm a abarrotar de turistas ignorantes que olham sem ver nada! E que julgam fixar o mundo nas fotos para verem depois, em casa. E aquelas “selfies” todas iguais que fazem, a rirem-se, com os monumentos por detrás das costas.
- Não sejas injusto, Ratinho, intervim. Há tanta gente por esse terra fora que gosta de descobrir coisas novas. E que têm curiosidade de ver os lugares com que sonharam - nem que seja por poucas horas…
- Achas? Para mim, eles querem ver coisas de mais e a toda a velocidade. O que levam consigo? Imagens. Penso que o que tiram é um conhecimento superficial das coisas. Isso irrita-me. E destroem os lugares…
- Ratinho, tu és um poeta! Tens de te pôr no lugar deles. Não te esqueças que uma emoção, por breve que seja, ou uma impressão forte, durem o tempo que durarem, podem ser uma inspiração para coisas futuras. Fazem pensar. São momentos que, aparentemente superficiais, podem deixar uma marca. Que um dia podemos aprofundar.
Ainda duvidoso, o Ratinho pareceu concordar.
- Tu viste mais do que eu, viveste mais do que eu, tu sabes. E se o dizes, eu quero acreditar. Sim, talvez. De facto, deve ter muito encanto ver a Piazza dell' Unità iluminada, lá de dentro do barco, com as águas do golfo em redor, os barquinhos no porto, a montanha do Carso lá no alto...
Depois acrescentou:
- Mas não impede que esses turismos de massa me pareçam um “comércio”, uma “indústria” em que muitos ganham e os turistas perdem. 
Pensativo, ainda disse:
- Em certas coisas tens razão. As experiências, mesmo curtas, podem ser valiosas um dia mais tarde.
Vittorio Bollafio 
O Ouricinho estava contente por ver que ele concordava connosco.
- A Jana tem razão. Para conheceres tudo, profundamente, tens a vida inteira à tua frente!
E, a rir-se:
- E de certeza que uma vida não vai chegar! O mundo é tão grande e tão belo… Ainda há tanto para ver, não é?

Não lhe respondi directamente. A verdade é que os ouvia e ia pensando como era bom rever os lugares que amámos. Os pormenores em que não reparámos antes, as ruas que descobrimos por acaso e que passam a ser da nossa preferência.
E pensava na via Cavana, em Trieste, ao lado do Jardim Hortis - que só conheci no ano passado e que é todo ele um bairro especial. Com novos cafés, como o Mug, por exemplo, cheio de estudantes e gente simpática, onde o chocolate quente era muito bom!. 
no Caffè Mug

E aquele artista a tocar velhas músicas, no acordeão. Chamava-se Fabio, era amigo de uma amiga nossa e tinha um cão que levava a passear aos domingos, com uma trela vermelha o cão - e ele com um cachecol, vermelho também. Disse-me a Claudia que o cão se chamava Prince e era um bassotto.
E também aquele cãozinho que fazia anos e tinha um lacinho azul ao pescoço, sempre na Via Cavana... 
Ou ir até ao “ghetto” que só conhecemos este ano e onde havia boas livrarias cheias até ao tecto de livros antigos, raridades mesmo, e de livros em segunda mão, ao lado de best-sellers recentes.
Perto das grandes livrarias, vimos o senhor que vendia livros e velhas revistas do Tio Patinhas e do Diabolik, em segunda ou, talvez, em terceira mão - e que nos contou tantas coisas! Do pouco que se vendem os livros, das saudades dos tempos em que começou com uma barraca, tinha então 18 anos e do amor que desde sempre teve aos livros. Toda a vida vendera livros e para ele um livro era a coisa mais maravilhosa que havia.
o arco por onde se vai da Piazza ao ghetto

E lembrei a moeda de um euro que escorregou para debaixo da barraca cheia de livros policiais, os "gialli" Mondadori, diante da qual fiquei especada a ver tanto livro policial bom. Ao pagar,  uma moeda de um euro caiu para o chão e desapareceu. Quis dar-lhe outro euro mas o senhor não aceitou. 
Já mo tinha dadoHá-de aparecer. Para algum sítio foi.” Passados uns dias, quando lá voltámos, desta vez a comprar um livro do Simenon, disse logo: “Apareceu a moeda! Foi o meu neto que a encontrou. Andou ali por baixo e viu-a. Tinha rolado para longe!”
Sim, há pessoas que surgem de repente nem sabes de onde e te dizem uma palavra, te deixam um gesto de gentileza, uma atitude de compreensão, um sorriso doce - e tudo muda nessa manhã em que, por ventura, acordaste mal disposta...
Agora, eles estão a fazer a caminha para se deitarem, A Gatinha japonesa esteve sempre calada porque tinha adormecido na minha cama. 
Estão cansados, excitados, com tantas imagens na cabeça. Imagens que vão assentando. Tantos dias lá por fora, tanta desarrumação, tanta confusão! Tudo se irá ajustando pouco a pouco.

Sim, vou dormir também. lá longe, desce a noite sobre Trieste! Boa noite, amigos! Voltarei para contar mais histórias da viagem!