terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Um anjinho à procura do Natal



Vou contar uma história de Natal. Chegou-me às mãos um anjinho, enviado por alguém com quem dantes costumava brincar.
Saltou do embrulho, brilhante nas suas pérolas, nas contas, nos cristais da estrelinha que trazia agarrada na mão. E pensei: este anjinho anda à procura duma árvore de Natal!
Onde há árvores de Natal aqui perto? AS árvores são tão lindas! Andei pela casa a ver o que podia ser o lugar para um anjo, no Natal.
A planta das orquídeas parece querer sair de uma hibernação emocional, talvez saudades da dona que a deixou para eu tomar conta dela. 

Depois, vi a arvorezinha que há dois anos foi a nossa árvore de Natal – mas já não é a mesma, tão triste e murcha, com tão poucas folhas onde se possa a pendurar um anjo lá no alto.
O anjinho olhava-me com um pedido mudo: “Pega-me, não me deixes. Eu queria tanto ser o anjo do Natal!”
E as mãozinhas feitas de pérolas, num gesto que adivinhei de tristeza e de esperança tocou-me. Há no ser humano solidões escondidas, ignoradas. Há sofrimento. Há medo de que não queremos falar. 
O ser humano é como um vidrinho. Pode durar, pode ambientar-se ou não. Pode partir um dia ou pode ficar.
Detrás do olhar do meu anjo eu encontrava outro olhar que me emocionou. A beleza, a suavidade, a efemeridade dum anjinho de cristal e pérolas e de continhas, com asas de cetim minúsculas, deu-me de repente vontade de chorar.
Talvez por ser Natal, talvez por saber que muita gente não tem natal, que há os que vivem na rua, não têm conforto nem calor, os que são afastados porque diferentes. Tantas bolas vermelhas, tanto azevinho de bagas rubras, tantos desejos.

É quando mais sinto a dor da separação, da luta dum homem contra outro homem igualmente frágil e mortal: o outro, o desconhecido que,  julgamos, vem ocupar o nosso lugar. O que não é igual a nós e é um rival talvez. O que não reconhecemos, o que empurramos,  no nosso tremendo egocentrismo
Há tantos anjos que sofrem nesta altura do Natal. 

O meu anjo tem os olhos tristes parecem implorar: Arranja-me uma árvore numa casa quentinha. Onde haja amor…”
Não sabia o que fazer porque este ano não arranjei uma árvore de Natal... 
De repente, agarrei-o ao colo, encostei-o ao peito.
Vais ter a tua árvore de Natal, vais ficar ao pé da estrela do Natal,  numa casa bonita, noutra terra, num lugar frio, onde há muita neve, sim. Mas onde terás calor!”

Olhei os seus olhos transparentes, porque o meu anjo é transparente como todos os anjos. E disse:
Vais ter uma família que te acolhe no Natal: a minha família, a casa do meu filho – a casa dos filhos é a nossa casa, é a mesma coisa. Ali vamos lembrar os amigos todos!”

O meu anjo sorriu. Eu creio que ele já sabia que tudo ia correr bem.
Também eu me senti contente por ele ir viajar connosco. Entusiasmada, decidi levar o Ratinho, o Ouricinho e a Gatinha japonesa!

Feliz Natal, meu anjo! Que sejas o anjo do Natal que a menina que mo ofereceu e com quem eu gostava de brincar me escreveu na cartinha que veio com ele: “Que te traga sorte e a todos os teus.”

Bom Natal, meu Anjo! Bom Natal, meus filhos! Bom Natal, amigos! Obrigada menina da minha infância com quem brinquei.


segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Trovoada de Outubro em Trieste



Entardecia mais cedo, em pleno Outono a mudança da hora fazia sentir o Inverno próximo. Amanhecera um lindo dia de céu azul, com sol que brilhara nítido desde manhã. 

A tarde descia e revelava nuvens escuras, sempre a correrem, alargando-se até ao horizonte em tom de rosa acinzentado cada vez mais escuro.
A Piazza, sempre agradável, parece inóspito e o próprio Caffè degli Specchi não nos aquecia: tudo anunciava mau tempo, mas não  aquele temporal que surgiu subitamente. 
O céu fechou-se e só os relâmpagos iluminam a Piazza dell’ Unità, e os trovões ribombam, num ritmo continuado, repetitivo.

A praça esvazia-se num instante e todos correm a refugiar-se nos caféspróximos. Nós tínhamos ido à Livraria Ubik, que fica no espaço do Palazzo Tergesteo, ao pé da Borsa. 

Nesse espaço restaurado, há restaurantes, lojas,  a livraria e também novo Caffé Tergesteo -substituto do antigo que fora famoso. 
Na esplanada, protegida da chuva, é um nunca acabar de gente que entra, que espreita, que volta a sair para afrontar a tempestade. Ou que, como nós, se senta à espera que ela acalme.
 Bebemos um chá com ervas desconhecidas, a escaldar, e esperámos. Parava, não parava? Havia quem se arriscasse, com o guarda-chuva aberto, logo as varetas viradas porque o vento, em rajadas fortíssimas, a bora, começara a soprar.
Por fim, decidimos sair porque o temporal se eternizava e não ia parar. Continuavam, chuva e vento, intensos.
Saímos para a rua, à aventura, de regresso ao Hotel que não ficava longe. No momento em que atravessávamos a praça aberta para o golfo, por onde o vento girava em círculos, fugíamos do céu iluminado pelos raios.
Recordei as trovoadas da minha terra e do ar aterrorizado com que a Florinda dizia: “Meninas, está iminente” e nos íamos proteger todas num canto da sala, depois de desligar o telefone e o aparelho de rádio. Como soava trágica a palavra "iminente"!

Santa Bárbara bendita,
que no céu estás escrita,
com papel e água benta…”
Céu, de Etsuko

Em Trieste, lembrei esses momentos em que sentia uma atracção aliada ao medo da trovoada. 
Aqui, sobre as nossas cabeças, girava interminável e iminente. A água que batia de chapa na calçada e nos fustigava as mãos e a cara, ia formando ondinhas no chão. 
Não valia a pena voltar para trás à procura da protecção que não existia em lado nenhum. A Piazza e os cafés estavam já longe e todo o comércio estava fechado. Não se via alma viva por aqueles sítios.

Avançámos, embrulhados nos impermeáveis, convencidos de que seria rápido. Chovia ininterruptamente e nem víamos bem por onde íamos. Chuva, batida de lado com muita força, ao sabor da “bora” que começara a soprar. Imaginei o mar ali perto e tive medo.
Decidimos meter pela estreita ruela, entre dois alinhamentos de casas, no espaço entre a via Cavana e a via Armando Diaz – um caminho que pareceu abrigado do vento, talvez a via Pescheria. Mas deparámos com uma espécie de corredor de águas, num remoinho junto às sarjetas e tampas de metal.
via Cavana, dias antes, de noite

Do alto dos velhos telhados, caía chuva em catadupas. Tinha medo de encontrar um buraco escondido e entalar lá um pé. A decisão de afrontar a tempestade fora inconsciência, mas agora não podíamos fazer mais nada a não ser andar em frente. 
Tentávamos colocar os pés com cuidado para não cairmos nalgum buraco, escondido pela água.

Continuámos a avançar com a sensação de não termos avançado nada e a dada altura virámos para a via Armando Diaz onde ficava o Liberty ResidenceNada se distinguia, naquela água suja que tinha uns quinze centímetros de altura. 

Na esquina, no momento de dar a curva - momento que nos pareceu uma eternidade descobrimos, aterrorizados, que a rua estava ainda mais cheia do que a ruela anterior. Pareciam ribeirinhos que, vindos das outras ruas, entravam na rua grande, em tumulto.

Faltavam poucos metros e a água chegava-nos aos joelhos.  A roupas encharcada, prendia-se às pernas e impedia os movimentos.
Sem guarda-chuva, mal defendidos, quase me senti desfalecer.  “E se caio?”, era o meu terror.
parte alta da cidade, em dia de sol (net)

A Diaz é uma das ruas principais, paralelas ao mar: a mais larga, e todas as ruas que a cruzavam despejavam nela as águas vindas da parte alta da cidade, do Castelo e do monte San Giusto.

Era uma espécie de rio, em forte corrente, que puxava para para o Golfo, em direcção à Piazza dell’ Unitá. Com as botas cheias de água, pesadas como se tivessem pedras lá dentro, o casaco a pingar, os cabelos molhados e agarrados à cara, sem ver nada, era um verdadeiro pesadelo.
E se caíssemos na água lamacenta? E se não conseguíssemos subir para o passeio que era alto?" 

Nem sei se foi nesse momento, se depois, que imaginei as perguntas.  
Andámos bastante, ainda, para atingir o passeio e entrar pela porta do hotel!
imagens da net, dia de temporal


Depois foi um banho, uma aspirina com um copo de leite quente, e as nova roupa vestida, até me sentir seca e segura. 

A trovoada durou muitas horas, noite fora. Como estaria a bela Piazza dell' Unità? E o Golfo e o Molo Audace? Conhecia as imagens do mar batido pela bora, mas não assim de noite e com chuva.

Ia espreitar de vez em quanto à janela. Impressionava-me o céu negro. De tempos a tempos, um relâmpago iluminava todo o quarto! 

E, logo outro. E, logo outro. E outro. A seguir, o ribombar dos trovões que pareciam afastar-se a rolarem, um após o outro.
relâmpagos sobre Trieste (imagem net)
relâmpagos sobre Trieste

Acabei por adormecer. A manhã seguinte foi azul e cheia de sol, sem rasto de água. Apenas um ou outro pingo caía dos beirais. Em volta, por cima da rua, as gaivotas giravam como loucas. 
No Molo Audace, as costureirinhas continuavam a coser, tranquilas, as bandeiras da Itália livre.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Os livros, o correio da Piazza Verdi ...e a signora Anunziata!

Eu viajo sempre carregada de livros e, claro, onde quer que vou aproveito sempre para comprar mais uns.
De tal modo que, em Trieste, uma semana antes de voltar para casa, vou aos correios da Piazza Verdi despachar  uns embrulhos de formato gigante para a minha casa de São João.
 Livraria Ubik
 A estação dos correios fica perto da Livraria Ubik, um lugar cheio de luz, de novidades, dos últimos livros e das reedições dos livros eternos da literatura de Trieste. 


De "Un anno di scuola" de Giannni Stuparich, ou de Bobi Bazlen, aos recentes "Instantanei", de Claudio Magris.
Dos livros de Giorgio Voghera sobre os anos da Psícanálise em Trieste,  e dos geniais irmãos Singer às reedições em formato de bolso de Dostoievsky ou Stendhal até Stefan Zweig, ou as viagens e os lugares de Ian Morris.
Ytzaac Bashevis e a "Shosha" figura inesquecível, ou o irmão Ytzaac, Israel Singer, ambos judeus fugidos da Polónia refugiaram-se na América.  Bashevis Singer é um contador de histórias inesgotáveis, de situações humanas em que o Além anda por cá e os dibuks infernizam o mundo dos homens, intrometendo-se e fazendo partidas, trocando os objectos do sítio, enfim! De Scipio Slataper, Gainni Stuparich a Elody Oblath que encheram a Trieste do início do século

Ora foi nos Correios da Piazza Verdi que encontrei uma mulher fabulosa, a signora Annunziata que já conhecia do ano passado.
Reconheceu-me porque aposto que ninguém mais mandou do correio da Piazza Verdi a quantidade de livros para Portugal que eu mandara no ano passado e ali estava eu outra vez com dois sacos pesadíssimos.
Anunziata é um nome muito característico do Sul da Itália, e notava-se um pouco na maneira de falar. Em Itália, há muitos modos de falar ou entoações que diferenciam os originários do Norte ou do Sul, dialectos e falares vários e cadências muito marcados: um napolitano não entende um veneziano por exemplo e vice-versa.
As gentes do Sul, dizem, são mais abertas e comunicativas. Não sei bem. São sempre atenciosas - depois de perceberem que não estamos ali para as ofender. Há uma desconfiança inicial mas tudo se resolve com um sorriso e duas palavras. 
Como os outros, no fim e ao cabo. Como dizem os italianos “tutto il mondo é paese”. Por grandes que sejam os países ou as cidades, todos acabamos por ser iguais aos das pequena aldeias…
Provavelmente um veneziano não entende um genovês (nem está interessado nisso) apesar de estarem a relativamente poucos quilómetros de distância. Para não falarmos do fiorentino que esse não entende ninguém.
 E sem esquecer o “romanesco” – de Roma, claro- que todos sabemos de onde vêm mas não entendemos nada do que eles dizem quando decidem falar “romanesco”, cerrado e duro, com gestos de mãos que não há por ali, em Trieste.
Falei delicadamente com a signora Annunziata – que depois me contou que, de facto, era da Sicília, de Cefalu. Ela que, pelos vistos, recordava a cena do ano passado, sorriu-me e perguntou: “é para Portugal não é?”
O tom ríspido e um pouco seco com que tinha atendido clientes antes de mim e o ar de “não dar confiança a ninguém”, desapareceram.
Penso que o pessoal que tem de atender o público, horas seguidas, ouvir protestos, impaciências, tem de criar uma certa forma de distância, que é uma defesa. 
Porque, se o comum dos mortais se queixa de quem está a atender nas lojas, nas repartições e etc -  a verdade é que os “mortais” que estão do lado de lá do balcão, ou da mesa, têm um trabalho infernal e também devem queixar-se. Trabalho monótono, repetitivo, aborrecido muitas vezes. Esgotante, sempre. E nem sempre se pensa no "espírito do Natal" quando ele vem longe...
Bem, mas não era este o meu propósito: falar das relações entre dum lado profissionais do atendimento e do “consumidores”, utentes e etc.
 A signora Annunziata ajudou-me a escolher o modo mais económico para mandar aqueles quilos dos embrulhos! Era uma caixa grande mais dois envelopes enormes. 

Foi à arrecadação, várias vezes, para escolher o que ela entendia ser a caixa mais leve e o preço mais “económico” para mim. Não valia a pena mandar por “correio expresso” – disse ela- porque seria uma grande diferença no preço e uma vez não tinha urgência, pois ficava uns dias em Trieste, mais valia que a encomenda andasse por aí a viajar calmamente até eu chegar a casa. 


De facto…os embrulhos chegaram uns quinze dias depois de eu voltar.
Ah! Mas foi uma ideia sublime essa de mandar pelo correio o que me pesava – e nem cabia na mala. Ideia que me salvou as costas - e ter de lutar com as outra maletas antes de regressar…
A vida é feita de muitas histórias, e momentos aparentemente insignificantes. O que é certo é que, durante aquela pequena conversa entre nós, houve uma comunicação de simpatia. Não sei quantas pessoas estavam na fila atrás de mim. 
Sei que foi um prazer para as duas aquelas poucas palavras no meio de tantas ideias para simplificar a minha viagem de regresso!
Correios, Piazza Verdi, Anunziata, sim, Verdi. 
Ah! "Va, pensiero"... 
Tão bonita que é esta ária de Giuseppe Verdi!
Sorrio a recordar. 

Boas Festas de Natal, signora Annunziata!