quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

o Adeus a Aharon Appelfeld o homem que soube amar


Ainda Appelfeld? A mesma história dos judeus? Não. Para mim é a despedida de um amigo que conheci brevemente mas que senti como amigo. 
Conhecêmo-lo a primeira vez em Jerusalém, nos anos de Israel.
Mais tarde, voltámos a visitar o amigo, na Cafetaria Tmol Shilshom onde gostava de ir escrever todas as manhãs. 
Vivia em Mevasseret Zion, uma terrinha perto de Jersusalém.
Sim, escrevia todas as manhãs o seu livro -tantos livros sobre a dor e a incompreensão; o furor da Guerra e da Deportação, mas igualmente o "furor" de continuar a existir, a sobreviver amando.E recordando.

O mesmo livro? O seu livro era a vida. Cada livro, falando da mesma dor, da mesma “chaga do lado”, é sempre um modo diferente de procurar o sentido daquilo que não tem sentido.

Desta vez, é o silêncio. Num dos últimos livros, (E o furor ainda não se calou) Appelfeld volta a falar  desse eterno recomeçar, dessa reconstrução, dessa aquisição de uma língua nova para quebrar esse silêncio. De uma língua que soe como uma música. Uma música que é a história de uma vida...

O livro começa simplesmente, como todos os seus livros:
Chamo-me Bruno Brumhart. Todas as noites copiava um capítulo inteiro para que a minha mão se pudesse impregnar dessa língua e da sua música. “

A impossibilidade de compreender, de explicar leva, desta vez, as personagens ao silêncio: Bruno e os outros pouco falam, fecham-se na dor.

Aaron Appelfeld escolheu a "palavra" para se libertar da dor. Jovem sobrevivente dos campos, chega, deportado, deslocado uma vez mais, agora a Itália e, em 1946,  à Palestina, onde se lhe depara um país em construção do qual não entende a língua. Do qual não entende nada, ele judeu que vem da Roménia (ou Ucrânia? as duas...), de língua e cultura alemãs.
E, dolorido, isolado, volta a ir dentro da alma buscar novas forças: outro modo de viver, de se adaptar  à vida que continua sem ter sentido. Mas sem se fechar aos outros, porque o seu interesse no ser humano é insuperável.
Aaron Appelfeld com a Gui


Philip Roth disse dele: “Appelfeld, um escritor deslocado, (desenraizado?) de ficção deslocada que fez da deslocação e desorientação um tema sue, próprio.”
(Difícil traduzir "displaced" apenas como deslocado).

A mesma história, sim, com muitas palavras diferentes. Agora falada na língua hebraica que aprendeu com persistência e coragem nesses anos em que tudo lhe parecia  aguçar mais a dor sentida. Sem família, sem amigos, resta-lhe a palavra.
Cafetaria Tmol Shilshom

Com essa nova música fala de coisas traumatizantes e cada palavra tem de ser escolhida com cuidado, com prudência, para não se tornar banal ou falso. Não queria escrever sobre o “macro”, queria falar do “micro”. 

Estamos rodeados de pormenores, é preciso encontrar o pormenor que diz tudo e não nos alargarmos…

Neste momento, hoje dia 4 de Janeiro, Aaron Appelfeld deixou de existir. Calou-se? não creio. Deixa a palavra que procurou sempre clara para “dizer” do indizível.
Appelfeld e eu

A palavra de Appelfeld não será esquecida. Continuará a obcecar-nos, a perseguir-nos, cheia de imagens de dor, de beleza também e de gestos belos e solidários.

Para mim, fica o seu olhar azul, aberto, que nos olhava com atenção e suavidade, querendo perceber tudo, abarcar o olhar do outro, sem se evidenciar nunca, sério e interessado vivamente no ser humano que o olhava. Um homem que amava os outros.


Nascido em Jadova – Bucovina (antes Roménia hoje Ucrânia) em Fevereiro de 1932, Aaron Appelfeld morreu em 4 de Janeiro de 2018. Viveu em Mevasseret Zion,  perto de Jerusalém

4 comentários:

  1. A sua homenagem exprime toda a sua admiração. MJ,
    como tal, é honrosa, louvável e sentida...
    Uma alma dilacerada que partiu... Que repouse
    em Paz Profunda.

    Os meus votos de um Bom Ano Novo para nós, para
    as nações e para a humanidade...
    ~~~ Beijinhos ~~~

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  2. É sempre bom não deixar morrer os mortos que amamos

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  3. Gosto de a ver de volta!
    Beijinhos e bom domingo:)

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  4. Uma figura que sofreu e triunfou, e ficará para sempre. Mas " o furor ainda não se calou". Nem calará.
    Amanhã lá vou, com o tempo totalmente em contra...Beijinho

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